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A equidistância inviável [1]

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Date: 2023-04

Lula disse “não” ao pedido de Scholz de fornecer munição oriunda dos depósitos do Exército brasileiro para serem usadas nos tanques Leopard fornecidos à Ucrânia. Lula também disse “não” às pressões de seus parceiros do bloco dos BRICS, para alinhar-se com eles na votação da Resolução da ONU n. ES-11/L.7. Em 16 de fevereiro, o Brasil votou com os outros 140 Estados-membros das Nações Unidas que exigiram a desocupação “integral, imediata e incondicional” dos territórios ucranianos tomados pelas tropas russas. O voto do Estado brasileiro foi acompanhado por seus parceiros regionais com presidentes de centro-esquerda, como a Argentina (sob a presidência do kirchnerista Alberto Fernandéz), o Chile (Gabriel Boric), o México (López Obrador) e a Colômbia (Gustavo Petro). Todos eles votaram pela resolução que condena a Rússia em termos peremptórios. Em contrapartida, membros dos BRICS, China, Índia e África do Sul se abstiveram na votação dessa mesma Resolução. O presidente pertencente ao Partido dos Trabalhadores, recém-empossado para o seu terceiro mandato depois de quatro anos de governo da extrema-direita no Brasil, se equilibra entre a condenação formal da invasão de fevereiro passado pela Rússia e a recusa, seja em participar de sanções econômicas, seja em se envolver direta ou indiretamente na guerra na Ucrânia.

Brasil pró-multilateralidade

Na política externa brasileira, a defesa da multipolaridade nas relações internacionais historicamente significa a defesa da própria ONU, enquanto instância pluralista para a arbitragem das disputas e a promoção do direito internacional nas questões entre os Estados. O Estado brasileiro vem advogando o fortalecimento da Assembleia Geral, bem como a reforma dos poderes do Conselho de Segurança. Além disso, o Brasil vem pleiteando há algumas décadas a sua inclusão entre os membros permanentes do Conselho. O argumento principal é que, no século XXI, com a maior distribuição do poder decisório pelo globo, não há mais motivo para Estados como França e Reino Unido continuarem como membros permanentes ao passo que Brasil e Índia, não. Além de signatário do Tratado de Não-Proliferação nuclear, o Estado brasileiro igualmente adere ao tratado do Tribunal Penal Internacional – no qual, aliás, o ex-presidente Bolsonaro (2019-22) foi recentemente denunciado por crimes contra populações indígenas e ambientais na Amazônia, cometidos durante o exercício do mandato presidencial.

Independente de quem seja o presidente em exercício, o corpo técnico da chancelaria brasileira, formado por diplomatas de carreira, costuma exercer um contrapeso aos rompantes mais político-ideológicos na tomada de posicionamento por parte do chefe de Estado. Bolsonaro, um nostálgico do último período da ditadura cívico-militar no Brasil (1964-85), compartilha afinidades de valores com Putin, como o ultraconservadorismo religioso, a defesa da família nuclear e a redução da forma de fazer política ao paradigma da guerra. Em fevereiro de 2022, quando Putin determinou a invasão de larga escala da nação vizinha, os meios de mídia da direita organizada no Brasil começaram a retratar Bolsonaro como um genial estrategista, ao lado de Putin. Mesmo assim, o bom relacionamento interpessoal entre os presidentes da Rússia e do Brasil não foi suficiente para impedir que, em março, o Estado brasileiro votasse contra a invasão, na resolução sobre a invasão (n. ES-11/1). Em boa medida, a contenção do alinhamento ideológico entre Putin e Bolsonaro se deu em razão do prestígio e da capacidade de manobra que o corpo diplomático brasileiro detém.

De um ponto de vista técnico, ao buscar a equidistância, Lula não deixa de seguir princípios tradicionais caros às relações internacionais brasileiras: não-intervenção, solução pacífica dos conflitos e prevalência dos direitos humanos, que estão até mesmo inscritos como cláusulas pétreas da Constituição Federal. À parte do posicionamento de condenação formal na ONU, Lula busca não tender nem para o lado de Putin, nem de Zelensky, possivelmente na expectativa de cacifar-se para a posição de mediador. A calibragem do posicionamento de Lula semelha ao papel de intermediador projetado em 2009, quando montou um grupo paralelo de tratativas junto da Turquia para negociar a redução dos estoques de urânio enriquecido do Irã. Em entrevista dada à revista Time, em maio de 2022, Lula afirmou que Zelensky também tem culpa pela situação de guerra e que o presidente ucraniano precisa mudar a atitude diante da guerra. Neste ano, já empossado como presidente, ao recusar fornecer munição aos ucranianos, Lula apelou ao provérbio popular que “quando um não quer, dois não brigam”, dando a entender que nenhum dos dois lados está interessado em retornar à mesa de negociações. Conforme a anunciada plataforma de recolocar o Brasil no mapa múndi da diplomacia, assim revertendo a tendência isolacionista dos anos Bolsonaro, Lula propôs um “Clube da Paz”. O grupo seria composto por Estados “neutros”, com os líderes de China e Turquia, a fim de facilitar a retomada das conversas diretas entre Rússia e Ucrânia. O anúncio lulista foi comemorado pelos membros dos BRICS, inclusive pela Rússia, assim por membros do PT e apoiadores, que consideram Lula um importante player global retornando à ativa. Entre os aliados dos ucranianos, à primeira vista, apenas Macron acenou para a proposta lulista de paz. O presidente francês pontuou no encontro do G-20 em Nova Déli como a unilateralidade das ações da Europa e Estados Unidos no apoio econômico e militar à Ucrânia levou-os a “perder a confiança do Sul Global”.

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A interdependência russo-brasileira

Por trás das declarações e humores ideológicos de Lula e Bolsonaro, subsiste uma razão pragmática mais profunda para a reticência com que o Estado brasileiro vem se posicionando no conflito. Isto explica, em parte, a constante dosagem das críticas a Putin e a limitação das condenações à Rússia ao âmbito formal e declaratório. O ex-presidente do Brasil e o atual detêm entre as suas bases parlamentares importantes segmentos de interesse ligados ao agronegócio, que corresponde a nada menos do que cerca de 26% do PIB e 48% das exportações totais brasileiras ou USD 160 bilhões/ano. A produtividade do agronegócio está condicionada à aplicação massiva de fertilizantes, sobretudo adubos NPK (nitratos, fosfatos, sulfatos). No cômputo total, o Brasil é o maior importador de NPK do mundo e a Rússia é atualmente o país de origem da maior parte das importações, atendendo a 22% da demanda, conforme dados de 2022. Ao longo das últimas duas décadas, a indústria agropecuária nacional não se preocupou em desenvolver autossuficiência na produção de fertilizantes, pois sempre foi considerada uma commoditie de fácil acesso, sendo mais barato comprá-la no mercado globalizado do que internalizar sua cadeia produtiva.

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[1] Url: https://www.opendemocracy.net/pt/equidistancia-inviavel-lula-multipolaridade-sul-global-ucrania/

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