The Project Gutenberg EBook of Flores do Campo, by João de Deus

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Title: Flores do Campo

Author: João de Deus

Release Date: December 23, 2008 [EBook #27599]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FLORES DO CAMPO ***




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Notas de Transcrição

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     *      *      *      *      *




FLORES DO CAMPO


A propriedade d'este livro pertence, no Brazil, ao snr. Joaquim Augusto
da Fonseca.




João de Deus


FLORES DO CAMPO


2.ª EDIÇÃO CORRECTA



PORTO

LIVRARIA UNIVERSAL
de
Magalhães & Moniz, Editores

12--Largo dos Loyos--14

1876


PORTO: 1876--TYP. DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA
62, Cancella Velha, 62




A POESIA


EMBLEMA

Camões e Byron--Scepticismo e Crença

   Vem d'alto gozar, lirio!
   Noite estrellada e tepida;
   A vista ao céo intrepida
   Lança, penetra o Empyreo.

   Dilata os seios tumidos;
   Larga este terreo albergue;
   Nas azas d'alma te ergue;
   Ergue os teus olhos humidos

   Que vês?--Soes, de tal sorte
   Que os crêra tochas pallidas,
   Quando as guedelhas, madidas
   De sangue, arrasta a morte.

   --Transpõe-n'os; que, elevando-te,
   Por cada um d'aquelles,
   Milhões e milhões d'elles
   Verás alumiando-te.

   Ávante pois, acima
   Dos soes d'uma luz tremula;
   Alma dos anjos emula!
   Deus o teu vôo anima.

   Que vês?--Um vacuo eterno.
   --E n'elle?--Em ermo tumulo,
   Em ignea letra (cumulo
   D'horror) _Byron_--o inferno.

   --Foge.--O horror fascina-me.
   São reprobos que exhalam
   Horridos ais que abalam
   O inferno: oh Deus! anima-me.

   --Escuta-os.--Escutemol-os.
   Como elles bramem, rugem,
   E o espaço uivando estrugem...
   Gelam-se os membros tremulos.

   --Entra.--Não posso.--Arromba.
   --Prohibem-m'o.--Subleva-te.
   --Prohibe-o Deus.--Eleva-te.
   Acima, ingenua pomba!

   Que vês? A luz clareia-me.
   Que céo, que azul ethereo!
   Oh extasi, oh mysterio!
   Sobeja a vida, anceia-me.

   --Falla.--Deus! que harmonia!
   Aqui a alma exalta-se;
   A alma aqui dilata-se...
   _Camões!_--É a poesia.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




 A UMA CARTA ANONYMA


   Não sabe a flôr quem manda a luz do dia,
   Nem quem lhe esparge o nectar que a deleita
            Ao vir raiando a aurora,
   E ella agradece as lagrimas que aceita,
   E ella as converte em balsamos que envia
            Ao mysterio, que adora.

                                    LAMARTINE.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




DUAS ROSAS


   Que bonita, meu amor!
   Que perfeita, que formosa!
   A ti pozeram-te Rosa,
   Não te fizeram favor.
   A rosa, quem ha que a veja
   Bandeando, sem gostar?
   Mas por mais linda que seja
   A rosa, quando se embala,
   Não te ganha nem iguala
   A ti em indo a andar.

   A rosa tem linda côr,
   Não ha flôr de côr mais linda;
   Mas a tua côr ainda
   É mais fina e é melhor.
   Murcha a rosa (que desgosto!)
   Só de lhe a gente bulir;
   E essas rosas do teu rosto
   É em alguem te tocando
   Que parece mesmo quando
   Ellas acabam de abrir.

   Cheiro, o da rosa, esse não,
   Não é mais do meu agrado,
   Que o teu bafo perfumado,
   A tua respiração.
   Depois a rosa em abrindo
   Vai-se-lhe o cheiro tambem:
   A tua bocca em te rindo
   Só o bom cheiro que exhala...
   E quando fallas, a falla,
   Isso é que a rosa não tem.

   Ella o que tem, meu amor?
   O cheiro, a côr e mais nada.
   Confessa, rosa animada!
   Que és outra casta de flôr.
   Os olhos só elles valem
   Duas estrellas, bem vês;
   Pois vozes que a tua igualem
   Na doçura, na pureza,
   Na terra, não, com certeza;
   Agora no céo, talvez.

   Não ha assim perfeição,
   Não ha nada tão perfeito,
   Mas é um grande defeito
   O de não ter coração.
   N'isso é que te leva a palma
   A rosa, sendo uma flôr
   --Sem voz, sem vida, sem alma,
   Que abre logo á luz da aurora
   E á noite esconde-se e chora
   Pelo sol, o seu amor.

   Ora e se a rosa, vê bem,
   Tem amor, não tendo vida,
   Será coisa permittida
   Tu não amares ninguem?
   Suppões que Deus te agradece
   Essa isenção, minha flôr!
   Deus a ninguem reconhece
   Por filho senão quem ama:
   A terra e o céo proclama
   Que elle é todo puro amor.

Messines.

     *      *      *      *      *




A UMA MULHER


   Amo-te a ti, e a Deus.
   Teus sonhos são riquezas
   Talvez e fasto. Os meus,
   És tu, que me desprezas.

   Deixal-o. Amor acaso
   É racional? Não é.
   O fogo em que me abrazo
   É como a luz da fé;

   Que além de cega, apaga
   O facho da razão.
   Ama-se e não se indaga
   Se se é amado ou não.

   Amo-te. O mais ignoro.
   Mas os meus ternos ais
   E as lagrimas que chóro
   Podem dizer o mais.

   Que chóro; se te admira.
   Nunca tiveste amor.
   Quem tem amor, suspira,
   E o suspirar é dôr.

   Ah! quando abraço e beijo
   O travesseiro e, assim,
   Acórdo e te não vejo,
   Vejo-me só a mim;

   Não sei, mulher! que anceio
   Se me traduz n'um ai!
   Confrange-se-me o seio,
   Rebenta o pranto e cái.

   Então, se por encanto
   Fallando em ti, mas só,
   Todo banhado em pranto
   Me visses, tinhas dó.

   Tinhas. A piedade
   É filha da mulher,
   Que sempre quiz metade
   D'uma afflicção qualquer.

   Havias ao teu rosto
   De me apertar a mim,
   D'encher, fartar de gosto,
   Todo este abysmo; sim.

   Vós desprezaes embora
   Culto e adoração
   De quem vos ama; agora
   As dôres, essas não.

Messines.

     *      *      *      *      *




A D. CANDIDA NAZARETH

Por occasião da morte de sua irmã Rachel e, poucos dias depois, de sua mãi


   Despe o luto da tua soledade
   E vem junto de mim, lirio esquecido
           Do orvalho do céo!
   Tens nos meus olhos pranto de piedade,
   E se és, mulher! irmã dos que hão soffrido,
           Mulher! sou irmão teu.

   Consolos não te dou, que não existe
   Quem de lagrimas suas nunca enxuto
           Possa as d'outro enxugar:
   Não póde allivios dar quem vive triste,
   Mas é-me dôce a mim chorar se escuto
           Alguem tambem chorar.

   Botão de rosa murcho á luz da aurora!
   Que peccado equilibra o teu martyrio
           Na balança de Deus?
   Se é como justo e bom que elle se adora
   Quem te ha mudado a ti, ó rosa! em lirio,
           E em lirio os labios teus?

   Não enche elle de balsamos o calix
   Da flôr a mais humilde, e esses espaços
           Não enche elle de luz?
   Não veio o Filho seu, lirio dos valles!
   Só por amor de nós tomar nos braços
           Os braços d'uma cruz?

   Mulher, mulher! quando eu n'um cemiterio
   Levanto o pó dos tumulos sósinho:
           Eis, digo, eis o que eu sou.
   Mas quando penso bem n'esse mysterio
   Da virtude infeliz: vai teu caminho;
            Dois mundos Deus creou.

   Deus não dispara a setta envenenada
   Á pombinha que aos ares despedira
           Com mão traidora e vil.

   Imagem sua, Deus não volve ao nada,
   Não aniquila a flôr que ao chão cahira
           Lá d'esse eterno abril.

   Has-de, cysne! expirando alçar teu canto,
   Has-de lá quando a lua da montanha
           Te acene o extremo adeus,
   Voar, Candida! ao céo, e ebria de encanto,
   No oceano d'amor que as almas banha,
           Unir teu canto aos seus.

   Seus, d'ellas, mãi e irmã, cinzas cobertas
   D'um só jacto de terra... oh desventura!
           Oh destino cruel!
   Vejo-as ainda ir com as mãos incertas
   Guiando-se uma á outra á sepultura,
           E a mãi: Rachel! Rachel!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




AMOR


   Amo-te muito, muito.
   Reluz-me o paraiso
   N'um teu olhar fortuito,
   N'um teu fugaz sorriso.

   Quando em silencio finges
   Que um beijo foi furtado
   E o rosto desmaiado
   De côr de rosa tinges;

   Dir-se-ha que a rosa deve
   Assim ficar com pejo,
   Quando a furtar-lhe um beijo
   O zephyro se atreve;

   E ás vezes que te assalta
   Não sei que idéa, joven!
   Que o rosto se te esmalta
   De lagrimas que chovem;

   Que fogo é que em ti lavra
   E as forças te aniquila,
   Que choras, mas tranquilla,
   E nem uma palavra?

   Oh! se essa mudez tua
   É como a que eu conservo,
   Lá quando á noite observo
   O que no céo fluctua;

   Ou quando, á luz que adoro,
   Ás horas do infinito,
   Nas rochas de granito
   Os braços cruzo e chóro;

   Amamo-nos... Não cabe
   Em nossa pobre lingua
   O que a alma sente, á mingua
   De voz, que só Deus sabe.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




A DONZELLA E O MUSGO


   Um dia, não sei que eu tinha...
   Uma tristeza tamanha!
   E lembra-me ir á montanha,
   Que temos aqui vizinha,
   Onde em tempo me entretinha
   Horas e horas sósinha
   Quando ainda se não estranha
   Que n'uma teia de aranha
   Se prenda uma innocentinha,
   Ou atraz d'uma avesinha
   Se cance a vêr se a apanha.

   Depois é que o mundo falla
   E se mette com a vida
   De quem ás vezes se cala
   Por ser mais bem procedida.
   Que esta gente que faz gala
   Em coisa, que vê, contal-a,
   E sendo mal permittida
   Inda em cima acrescental-a,
   Teem a lingua comprida
   E bem deviam cortal-a.

   Vou pelo córrego acima,
   Subo á ponta do penedo;
   Que a vida só quem a estima
   É que da morte tem medo.
   A mesma tristeza anima
   A encarar a pé quedo
   A morte que se aproxima
   A tirar-nos do degredo,
   Que inda a gente se lastima
   De não acabar mais cedo.

   E alli sósinha chorando
   Me lembrava, ora a ventura
   Da minha infancia, inda quando
   Levava os dias brincando;
   Ora a desgraça futura,
   Que me estava annunciando
   Não sei se a minha amargura,
   Se uma nuvem, grande e escura,
   Que se ia no ar formando
   E vinha já avançando,
   Como que á minha procura.

   E ainda o pranto corria
   E o cabello me batia
   No rosto, que me doía,
   Tal era a força do vento;
   Já tudo tão pardacento
   A nevoa e chuva fazia
   Que eu olhava, mas dizia:
   É nuvem ou penedia
   Aquelle vulto cinzento?
   O mar brilhante algum dia
   Como prata luzidia
   Já ninguem o distinguia
   Da terra e do firmamento:
   Uivar só é que se ouvia,
   Mas uivar sem sentimento;
   E como em grande tormento
   Se desvaira a phantasia:
   --Fosse eu mar, disse; valia
   Mais ser coisa bruta e fria,
   Como a rocha onde me sento.

   Faz um trovão no momento
   Que soltava esta heresia;
   E áquella rouca harmonia
   Occorre-me um pensamento,
   Que me dá uma pancada
   O coração de tal modo,
   Como se o rochedo todo
   Desandasse na chapada.

   Era a voz da consciencia
   Que me accusava do crime
   De negar á Providencia
   A razão com que me opprime.
   Peço perdão, commovi-me
   E n'um extasi sublime
   Lagrimas de penitencia,
   Como um balsamo, uma essencia,
   Purificam-me e senti-me
   Com uma nova existencia.

   Ólho; as nuvens esvaíam-se:
   Os roncos do mar ouviam-se,
   Mas já mais de espaço a espaço.
   O sol ainda tão baço,
   De luz tão pouco brilhante,
   Que se media a compasso
   Como a cara d'um gigante,
   Descobre-se e resplandece!
   Ao longe o mar apparece;
   E tudo, mar, terra e céos
   Tão formoso me parece,
   Como se agora tivesse
   Sahido das mãos de Deus!

   No rochedo onde descança
   Meu corpo desfallecido,
   O verde musgo, vestido
   Sempre da côr da esperança,
   Agora reverdecido,
   Me ensina a ter confiança
   N'esse que do céo nos lança
   Em dia tempestuoso,
   Só para nosso repouso
   O arco da alliança.

   Pobre musgo, descuidado,
   Sem olhos para chorar,
   Sem poder alliviar
   Com seu pranto um desgraçado,
   Consolar-se e consolar!
   Fallas mais a meu agrado
   Que o livro mais afamado
   D'esses livros, que em lugar
   De nos dar consolação,
   Nos fazem cahir no chão
   Um pranto mal empregado,
   E inda mais amargurado
   Nos deixam o coração.

   Colhi-o, pul-o no seio,
   E é hoje o livro que leio.

Messines.

     *      *      *      *      *




ULTIMO ADEUS


   Prestes, se inda na rocha de granito
   D'onde em tempo me vias te sentares,
   Não olhes para a terra ou para os mares,
   Olha sim para o céo, que é lá que habito.

   Lá tão longe de ti, mas não do terno,
   Bondoso pai que os dois nos ha gerado,
   Só para mágoas não, que bem guardado
   Nos tem tambem no céo prazer eterno.

   Não se é só pó no fim de tanta mágoa.
   Senão, diga-me alguem que allivio é este
   Que sinto, quando á abobada celeste
   Alevanto os meus olhos rasos d'agua.

   Mentem os céos tambem? Os céos maldigo.
   Feras, tigres, tambem o céo povôam?
   Tambem os labios lá sorrindo côam
   Veneno desleal em beijo amigo?

   Mas na dôr é que os astros nos sorriem,
   E os homens não sorriem na desdita.
   Astros! fio-me em vós, e Deus permitta
   Que os infelizes sempre em vós se fiem.

   Intima voz do fundo, bem do fundo
   D'alma me diz (e as lagrimas me saltam):
   Vês os milhões de soes que o espaço esmaltam?
   Pisa a terra a teus pés, inda ha mais mundo.

   Ha depois d'esta vida inda outra vida.
   Não se reduz a nada um grão d'arêa,
   E havia de a nossa alma, a nossa idêa
   Nas ruinas do pó ficar perdida?

   --Isso que pensa e quer (até me admiro),
   Isso que a luz nos traz, que a luz nos leva,
   Isso que me abre o céo que ao céo me eleva
   N'um teu cançado olhar, n'um teu suspiro!

   Onde, não sei eu bem, mas sei que existe
   Deus remunerador. Depois de mortos
   Hemos de vêr-nos, e um no outro absortos
   Fartar de glorias este amor tão triste.

   --Tão triste, e o coração que me adivinha
   N'este supplicio nosso este tormento!
   Nunca dos labios teus minimo alento
   N'um só beijo bebi em vida minha!

   E morro sem te vêr! Cabeça doida,
   Desasisado amor! Sonhar afflicto
   Um sonho até morrer... Não: resuscito;
   Morto tenho eu vivido a vida toda.

***

     *      *      *      *      *




ROSAS


   Trazeis-me rosas; d'onde as heis trazido,
   Boa velhinha e minha boa amiga?
   Rosas no inverno! permitti que o diga,
   Sois feiticeira: d'onde as heis colhido?

   Na primavera de meus annos, ólho,
   Mas vejo abrolhos e não vejo flôres:
   E vós colhêl-as, como as eu não colho...
   Sois feiticeira--enfeitiçaes d'amores.

   Enfeitiçaes que a formosura, crêde,
   Não vem da face avelludada e bella;
   A formosura vem só d'alma; é d'ella
   Que brota a fonte que nos mata a sêde.

   Vós sois velhinha, já não tendes côres
   Que o rosto animem e que os olhos prendam,
   Mas tendes prendas que o amor accendam,
   Tendes ainda no inverno... flôres.

Evora.

     *      *      *      *      *




ROSA E ROSAS


   A Rosa trouxe-me rosas
   E nada mais natural,
   Mas eu prendas tão mimosas
   É que não tenho; inda mal.

   Quando tinha, se me désse,
   Não digo mais que uma flôr,
   Talvez de flôres lhe enchesse
   Esses cofrinhos d'amor.

   Aguas passadas, Rosinha!
   Deixal-o; veja se vê
   N'este chão que já foi vinha
   Coisa que ainda se dê.

   Veja e escolha. Está na mesa
   O que ha em casa; é tirar
   --Tirar com toda a franqueza;
   Inda hão-de espinhos sobrar.

   Mas se espinhos, mas se abrolhos
   Lhe não agradam, amor!
   Mire-se bem nos meus olhos,
   Que ha-de ahi vêr... uma flôr.

Evora.

     *      *      *      *      *




A HERMANN

Por occasião d'um beneficio a um asylo


   «Conchega a mãi ao peito o filho caro;
   Estende a pomba as azas no seu ninho
         Pelos filhinhos seus.
   Embala o arbusto agreste; o fructo amaro.
   Guia a bussola o nauta em seu caminho,
         Como um dedo de Deus.

   «Bebe a nuvem no mar, no rio a fera;
   Acha o tigre covil na antiga Hyrcania,
         Hoje em dia, Ghilã;
   Renasce a planta á luz da primavera,
   E no calix da flôr gotta espontanea
         Cahe á luz da manhã.

   «Só eu no mundo um gosto em vão pretendo:
   Guebro entre os persas, entre os indios pária,
         Judeu entre christãos,
   Só eu debalde ao céo as mãos estendo,
   Como o naufrago á praia solitaria
         Debalde estende as mãos.

   «Tenho no livro azul onde Elle escreve
   Esse nome, que nunca pronuncia
         Quem bem o soletrou,
   Mil vezes tenho lido que não deve
   Queixar-se mais que a flôr que vive um dia
         Um verme como eu sou.

   «Porém, chorando, as mágoas diminuem.
   Custa muito soffrer sem que um gemido
         Ah! solte a nossa dôr.
   E se aos olhos as lagrimas affluem,
   É que este allivio nosso é permittido.
         O céo orvalha a flor.»

   Diz isto o orphão. De alma os ais lhe sahem,
   Como os suspiros de harpa eolea em ermo.
         Ninguem no mundo o ouviu.
   Mas, se a teus pés as lagrimas lhe cahem,
   Tocou a mão de Christo a mão do enfermo;
         O Lazaro surgiu.

   Por isso, Hermann! espantas-me. Não scismo
   Nos prodigios da milagrosa vara
         Que o Senhor Deus te deu.
   Teu coração, Moysés do christianismo!
   Tua alma é que eu admiro, e te invejára
         Se o que é teu... fosse teu.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




PRESENTIMENTO


   Emilia! não vês a lua
   Como vacilla e fluctua,
   Ora avança, ora recúa,
   E não ha passar d'alli?
   Tu és a imagem d'ella;
   És tão sympathica e bella,
   Meiga e timida, que ao vêl-a
   Me lembra sempre de ti!

   Tu és o botão de rosa
   Que abraçado á mãi formosa
   Só folga, só vive e goza
   N'aquella triste união;
   Treme até de ouvir a aragem
   Passar por entre a folhagem:
   Emilia! tu és a imagem
   Do mais timido botão.

   Mas embora: o tempo gira.
   Um dia o botão, que aspira
   O ar da manhã... suspira
   E levanta o collo ao céo:
   Vê vir raiando a aurora,
   Abre o seio á luz que adora,
   Correm-lhe as lagrimas, chora...
   Chora o tempo que perdeu!

   Porque elle, Emilia! não teme
   Que a luz da aurora o queime;
   Elle suspira, elle geme
   Por vêr a luz que o creou.
   Nem tambem a lua pára:
   Se algumas vezes repara
   N'uma nuvem menos clara,
   É um momento e... passou.

   Não ha existencia alguma
   Que não tenha amor; nenhuma;
   Porque o amor é, em summa,
   Essencia de todo o sêr.
   Ha sempre quem nos attráia.
   Mil vezes que a onda cáia,
   Ha uma rocha, uma praia
   Aonde a onda vai ter.

   Tu andas já presentida
   D'essa voz que te convida
   A encetar n'esta vida
   Ai! uma vida melhor...
   E em breve desenganada
   D'essa existencia isolada,
   Darás n'alma franca entrada
   A sentimentos de amor!

Silves.

     *      *      *      *      *




MARINA


I

APPARIÇÃO

   Como esse olhar é dôce!
   Dôce da mesma sorte
   Como se nunca fosse
   Toldado pela morte:

   Como se alumiasse
   O sol ainda em vida
   As rosas d'essa face...
   Agora carcomida.

   Colhesse-as eu mais cedo
   E logo que alvorece;
   Já não tivesse medo
   Que a terra m'as comesse.

   Mas pura, como a neve
   Que ás vezes cahe na serra,
   É que a nossa alma deve
   Tambem voar da terra.

   Gelasse a morte fria
   A mão profanadora
   Que te ennublasse um dia
   A luz que dás agora.

   É n'essa côr tão linda,
   Rosa da madrugada!
   Que sinto a alma ainda
   Andar-me enfeitiçada.

   Se um dia nos meus braços
   Te desbotasse as côres,
   Passavam os abraços...
   Passavam os amores!

   Oh! não: mil vezes antes
   No céo lá onde habitas,
   E os rapidos instantes
   Que vens e me visitas

   N'este degredo nosso,
   Que tanta gente estima,
   E eu, só porque não posso,
   Não largo e vou lá cima.

   Vem tu cá baixo, abala,
   Deixa em podendo o collo
   Tão terno que te embala,
   E vem-me dar consolo.

   Como essa imagem pura
   Ah! sobrevive ao nada
   E escapa á sepultura,
   Tão fresca e perfumada!

   Nunca uma noite eu deixe
   De estar a vêr que existes,
   Em quanto me não feche
   O somno os olhos tristes.

   E n'esse largo espaço
   Que te não vejo, espero
   Lhe contes o que eu passo
   N'este aspero desterro:

   Que assim que te não veja
   É noite fria e escura,
   Noite que mette inveja
   Á mesma sepultura!


II

SAUDADE

   Em acordando agora,
   O meu contentamento
   É vêr em cada aurora
   Um dia de tormento!

   Podesse eu dar-te a prova
   Dos dias que me esperam,
   Lançando-me na cova
   Onde elles te pozeram!

   Lançassem-me algum dia
   Ao pé, que de repente
   O coração te havia
   De ainda pular quente...

   A face cobrar logo
   A fórma e côr perdida,
   E a bocca toda fogo
   Ah! inspirar-me a vida!

   Supplíca, ó anjo! implora
   Ao Pai universal
   Que me deixe ir embora
   D'este horroroso val

   De lagrimas amargas,
   E turvas de tal modo,
   Como umas nuvens largas
   Que tapam o céo todo!


III

ETERNIDADE

   Inferno e céo, conforme
   A nossa fé, confesso
   Que é um mysterio enorme,
   É um mysterio immenso.

   Mas um mysterio é tudo:
   Folhinha d'herva, e estrella,
   Não ha comprehendêl-a!
   É contemplal-a mudo.

   E a herva, como existe,
   A mim quem m'o diria,
   Se a luz que me alumia
   Nem sabe em que consiste?

   Mas uma coisa sabe
   O que a cabeça ignora
   --O coração... que mora
   Em peito onde não cabe.

   Ha uma luz mais clara
   Que a luz do pensamento:
   A d'essa imagem cara...
   A d'este sentimento!


IV

.. 21 DE SETEMBRO

   Ha uma hora ou mais,
   Marina! que contemplo
   A casa de teus paes
   Que é para mim um templo.

   Está a porta aberta,
   E vejo alumiada
   A parte descoberta
   Da casa da entrada.

   Lá andam a passar
   Do quarto onde acabaste
   Á casa de jantar
   Os vultos, que deixaste.

   Os vultos, que os vestidos
   Tão negros que pozeram,
   De luto, tão compridos,
   Não sei que ar lhes deram!

   A tua bella irmã,
   A tua piedade,
   A rosa da manhã,
   A flôr da mocidade,

   Quem lhe diria a ella,
   Tão cheia de alegria,
   Que haviamos de vêl-a
   Assim já hoje em dia!

   É esta vida um mar,
   E bem se póde a gente,
   Marina! comparar
   A rapida corrente,

   Que vai de lado a lado
   Por esses valles fóra
   Sem nunca lhe ser dado
   Ter a menor demora.

   Pára, quando a engole
   Aquelle mar sem fundo;
   Nem pára; é como o sol
   E como todo o mundo...

   Ahi não pára nada,
   Tudo viaja e anda,
   Que a ordem lhe foi dada,
   E dada por quem manda.

   Chega a corrente lá,
   Engole-a logo a onda:
   Depois, que é d'ella já?
   A nuvem que responda.

   Que a nuvem que nos passa
   Pela manhã nos ares,
   Era hontem a fumaça
   Que andava n'esses mares;

   E a nevoa, que tu vês
   Nas ondas fluctuantes,
   Corria-nos aos pés
   Talvez um dia antes.

   A agua é que no giro
   Em que anda eternamente
   Não deu nunca um suspiro
   Em prova de que sente.

   .....................

     *      *      *      *      *




N'UM ALBUM

Pedindo-se ao author uma poesia

   Não me admira a mim que o sol, monarcha
   De indisputavel throno, e throno eterno
           Em céo e terra e mar;
   Que em seu imperio o mundo inteiro abarca
   Abaixe á pobre flôr seu dôce e terno,
           Mavioso olhar.

   Não me admira a mim que a crystallina,
   Tão pura, onda do mar, que espelha a face
           Do astro creador,
   Que essas asperas rochas cava e mina,
   Á praia toda languida se abrace
           E toda amor!

   Mas sendo vós um sêr mais precioso
   Do que onda e sol--um anjo de poesia
           Inspirada e que inspira;
   Que ás minhas mãos, das vossas, tão mimoso,
   Delicado penhor descesse um dia
           É que me admira.

   Quizera nos meus cofres de poeta
   Ter as riquezas todas do Oriente,
           E com mãos liberaes
   Expulsar esta duvida que inquieta
   Um grato coração que apenas sente
           E... nada mais!

   De limpido diamante e fio de oiro,
   Quizera-vos tecer collar que á aurora
           Vencesse em brilho e côr;
   Mas o poeta, o unico thesoiro
   Que tem, ah! são as lagrimas que chora
           E o seu amor.

   Eu vol-o dou. E lá do espaço immenso
   Se amada estrella olhar piedoso envia
           A quem da terra a adora;
   Se o sol aceita á flôr humilde incenso;
   Ha no amor tambem muita poesia...
           Minha senhora!

Evora.

     *      *      *      *      *




   Beijo na face
   Pede-se e dá-se:
       Dá?
   Que custa um beijo?
   Não tenha pejo:
       Vá!

   Um beijo é culpa
   Que se desculpa:
       Dá?
   A borboleta
   Beija a violeta:
       Vá!

   Um beijo é graça
   Que a mais não passa:
       Dá?
   Teme que a tente?
   É innocente...
       Vá!

   Guardo segredo,
   Não tenha medo...
       Vê?
   Dê-me um beijinho,
   Dê de mansinho,
       Dê!

   Como elle é dôce!
   Como elle trouxe,
       Flôr!
   Paz a meu seio;
   Saciar-me veio,
       Amor!

   Saciar-me? louco...
   Um é tão pouco,
       Flôr!
   Deixa, concede
   Que eu mate a sêde,
       Amor!

   Talvez te leve
   O vento em breve,
       Flôr!
   A vida foge.
   A vida é hoje,
       Amor!

   Guardo segredo;
   Não tenhas medo
       Pois!
   Um mais na face
   E a mais não passe!
       Dois...

   Oh! dois? piedade!
   Coisas tão boas...
       Vês?
   Quantas pessoas
   Tem a Trindade?
       Tres!

   Tres é a conta
   Certinha e justa...
       Vês?
   E o que te custa?
   Não sejas tonta!
       Tres!

   Tres, sim. Não cuides
   Que te desgraças:
       Vês?
   Tres são as Graças,
   Tres as Virtudes,
       Tres.

   As folhas santas
   Que o lirio fecham,
       Vês?
   E que o não deixam
   Manchar, são... quantas?
       Tres!...

     *      *      *      *      *




   Thuribulo suspenso inda fluctuo,
   Em quanto a alma em incenso restituo;
   Mas, quando como fumo que se esvai,
   Minha alma! vás teu rumo... sobe e vai.
   Vai d'estas densas trevas, d'esta cruz,
   Levar-lhe... quanto levas, pobre luz!
   Amor, que em mim não cabe, vai depôr
   Em Deus, e Deus bem sabe se era amor;
   Se d'outra flôr o calix mais libei
   Por esses quantos valles divaguei;
   Se um nome em igneo traço li no céo,
   Nas ondas e no espaço, mais que o seu...
   Deus sabe se eu dos montes vi tambem
   Nos vastos horisontes mais alguem;
   Nos tristes e risonhos dias meus,
   Se alguem vi mais em sonhos, que ella e Deus.
   Porém quem é que apanha o aereo véo
   Da nuvem da montanha, se é do céo?
   Se á terra a nuvem desce, quando vai
   Tocar-se-lhe, desfez-se como um ai.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




   Luz d'intima influencia,
   Oh fugitiva luz!
   Luz cuja eterna ausencia
   É minha eterna cruz.

   Podessem-te, ainda antes
   Do meu extremo adeus,
   Meus olhos fluctuantes
   Vêr lampejar nos céos.

   Se ainda n'esse espaço,
   Tão longe onde tu vás,
   Visse um reflexo baço
   Da pura luz que dás;

   Tornaram-se-me estrellas
   As lagrimas de dôr;
   E lagrimas são ellas...
   Sim, lagrimas d'amor!

   Vê n'esse espaço immenso
   Os astros como estão
   Bem como eu estou, suspenso
   Por intima attracção.

   Porque ha quem os attráia;
   É essa eterna paz
   Que a mim de praia em praia
   A suspirar me traz.

   Converte-me este inferno
   Em azulado céo,
   Ou quebra o laço eterno
   Que a tua luz me deu;

   Ou antes muda em espuma
   De nunca estavel mar
   Esta alma que alma alguma
   Póde exceder em amar.

   Em cinza, em terra, em nada,
   Meu sêr converte, ó luz,
   Mas sempre, sempre amada,
   Deliciosa cruz!

Portimão.

     *      *      *      *      *




RESPOSTA

A A. DO QUENTAL


   Em fumo se vai tudo, amigo! Olhando
   Para as nuvens do céo, nuvens d'aquellas,
   E parece-me ainda que mais bellas,
   Anda a gente fazendo e desmanchando.

   Dá-me uma saudade em me lembrando
   O bello tempo que passei com ellas,
   Por essa immensa abobada de estrellas,
   Por esse mar de fogo viajando...

   Andasse ainda eu lá, que não me havia
   De vêr por estes charcos atolado,
   Onde nem sol nem lua me alumia.

   Andasse ainda eu lá, desenganado
   Mesmo já como estou de achar um dia
   A patria d'aonde ando desterrado.

     *      *      *      *      *




   Pois se o homem, se anjo e nume,
       Planta e flôr,
   Dá seu canto, luz, perfume,
       Crença e amor;

   Pois se tudo sobre a terra
       Que ame alguem,
   Rosa ou espinho, quanto encerra
       Dá, se o tem;

   Se os carvalhos, nus, medonhos,
       Veste abril;
   Se inda a noite presta aos sonhos
       Graças mil;

   Se onde ha ramo, voz uma ave
       Desprendeu;
   Se onde ha folha, gotta suave
       Cahe do céo;

   Se na praia, quando a onda
       Vem de lá,
   Beijos, antes que se esconda,
       Mil lhe dá;

   Tambem, anjo meu saudoso!
       Te hei de emfim
   Ah! dar quanto de precioso
       Sinto em mim!

   Dou-te o nectar, que me acalma;
       Toma-o tu!
   Sim, meu pranto; mais uma alma
       Que eu possuo!

   Dou-te os sonhos meus ardentes,
       Mas leaes;
   Dou-te as notas mais cadentes
       Dos meus ais!

   Do que ha lindo, tudo quanto
       Me seduz;
   D'esta vida, riso e pranto,
       Noite e luz!

   Dou-te o genio meu, que á sorte
       Vês fluctuar
   Sem mais véla, sem mais norte
       Que esse olhar!

   Dou-te a lyra, que me inspiras,
       Sonho meu!
   Que suspira, se suspira,
       Flôr do céo!

   Dou-te; aceita: tudo é santo,
       Tudo, flôr!
   Dou-te uma alma toda encanto,
       Toda amor!

                         V. HUGO.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




FLÔR E BORBOLETA


   Tu vôas, borboleta! e que eu não possa
             Voar, amor!
   Diversa como é n'isto sorte nossa!
             Dizia a flôr.

   No valle, ambas irmãs, nascidas fomos;
             És como eu sou;
   E amamo-nos, e flôres ambas somos,
             Mas eu não vôo.

   A ti leva-te o ar; prende-me a terra
             A mim; e eu
   Como hei-de perfumar-te em valle e serra,
             E lá no céo!...

   Mais longe inda tu vás, por outras flôres...
             Girar, talvez,
   Em quanto a minha sombra, meus amores!
             Gira a meus pés!

   E vens-me vêr depois, mas vaes-te embora,
             Sabendo, assim,
   Que em lagrimas me encontra sempre a aurora!
             Pobre de mim!

   Acabem-se estas mágoas, meu thesoiro
             E meu amor!
   Cria raiz ou dá-me as azas de oiro,
             Celeste flôr!

                                       V. HUGO.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




REMOINHO


   Olha como embrulhado
   Que está ainda o céo
   E o chão, como ensopado
   Da agua que choveu...

   Foi um diluvio d'agua;
   E o furacão, que fez,
   Emilia! até dá mágoa
   Tantos estragos: vês?

   Esta infeliz víuva,
   Foi-lhe o telhado ao ar;
   Depois, já nem da chuva
   Tinha onde se abrigar.

   De mais a mais sósinha,
   Sem ter nenhum dos seus
   Aqui ao pé; ceguinha...
   Bemdito seja Deus!

   Além n'aquelle serro
   Parece que raspou
   Com uma pá de ferro
   A terra que encontrou.

   Nem um só pé de trigo
   És lá capaz de vêr.
   Já eu disse commigo:
   Como póde isto ser?

   As arvores arranca
   O vento muito bem;
   Serve-lhe de alavanca
   A rama que ellas tem.

   Vem de lá elle e, topa
   N'uma arvore, o que faz?
   Enrola-se na copa
   E, tronco e tudo, zás!

   Que as folhas não são nada,
   Uma por uma, não;
   Mas já uma pernada...
   Tão poucas ellas são?

   Vê lá se o teu cabello
   É para comparar;
   Mas, possa alguem sustel-o,
   Levanta-te no ar.

   Aqui um loureirinho,
   Que era o que havia só,
   Encontra-o no caminho,
   Ia-o fazendo em pó.

   D'aqui passa, á maneira
   Assim d'um caracol,
   Áquella farrobeira
   Põe-lhe a raiz ao sol.

   Aquelle enorme tronco
   Quiz resistir, depois,
   Ouviu-se um grande ronco,
   Quando o eu vejo em dois.

   Andava a rama toda,
   Emilia! assim, vês tu?
   Á roda, á roda, á roda,
   Eis senão quando, rhuh!

   Foi quando veio o outro
   Urrando como um boi,
   Oh que horroroso encontro!
   Então é que ella foi.

   Vês uma cobra enorme
   Á calma, quando está
   Grande calor, conforme
   As tenho visto já?

   Que não tem ar avonde,
   Falta-lhe já o ar,
   Quer sangue ou agua onde
   Se possa refrescar;

   Anceia-se, sacode
   O corpo todo a vêr
   Se vôa, mas não póde;
   Voar não póde ser;

   E como não supporta
   Já o calor do chão,
   Ao vêr-se quasi morta
   De raiva e afflicção,

   Apenas finca a ponta
   Do rabo em terra, e sái;
   E faça-se de conta
   Que é a voar que vai

   N'aquellas roscas todas
   Que, olhando-se-lhes bem,
   São outras tantas rodas
   Em cima d'onde vem;

   N'aquelle parafuso
   --Aquelle rodopio,
   Á roda como um fuso
   Suspenso pelo fio;

   Com a cabeça chata,
   Aquelle olhar feroz,
   Aquelle olhar que mata
   Sempre de fito em nós?

   Assim d'essa maneira
   É que elle vinha, o tal;
   Salta-lhe á dianteira
   Este de força igual;

   E assim que se avistaram,
   Não sei o que lhes dá;
   Ficam suspensos, param,
   Como com medo já;

   Aquelles sorvedouros,
   Em vez de remoinhar,
   Parecem-se dois touros
   Jogando a terra ao ar;

   Ouvia-se a oliveira
   Zunir no ar, então,
   D'um para o outro inteira,
   Nem bala de canhão;

   E assim se vão chegando
   Cada vez mais, até
   Que eu ólho, eis senão quando
   Vejo... mas vejo o que?

   . . . . . . . . . . . . . . .

Messines.

     *      *      *      *      *




AMORES, AMORES...


   Não sou eu tão tola
   Que cáia em casar;
   Mulher não é rola,
   Que tenha um só par:
     Eu tenho um moreno,
   Tenho um de outra côr,
   Tenho um mais pequeno,
   Tenho outro maior.

   Que mal faz um beijo,
   Se apenas o dou
   Desfaz-se-me o pejo,
   E o gosto ficou?

     Um d'elles por graça
   Deu-me um, e depois,
   Gostei da chalaça,
   Paguei-lhe com dois.

   Abraços, abraços
   Que mal nos farão?
   Se Deus me deu braços,
   Foi essa a razão.
     Um dia que o alto
   Me vinha abraçar,
   Fiquei-lhe d'um salto
   Suspensa no ar.

   Amores, amores.
   Deixál-os dizer;
   Se Deus me deu flôres,
   Foi para as colher.
     Eu tenho um moreno,
   Tenho um de outra côr,
   Tenho um mais pequeno,
   Tenho outro maior.

     *      *      *      *      *




FABULA


   Um dia os deuses, cada qual uma arvore,
   Á sua guarda consagraram: Jupiter
   Esse o carvalho, a murta Venus, Hercules
   Lá esse o alemo, e o loureiro Apollo.
   Vendo-as Minerva todas infructiferas:
   Que é isto? exclama. Jupiter acode-lhe:
   Senão, diriam, filha! que as guardavamos
   Só pelo fructo.--Que me importa digam-no;
   É pelo fructo que a oliveira escolho.

   Minerva! brada o pai d'homens e deuses,
   És quem, de todos, sabes mais sem duvida;
   No que não luza... mal fundada gloria.

   _Honra sem proveito
   Faz mal ao peito._

                                      PHEDRO.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




BOAS NOITES


   Estava uma lavadeira
   A lavar n'uma ribeira,
   Quando chega um caçador.

   --Boas tardes, lavadeira!

   --Boas tardes, caçador!

   --Sumiu-se-me a perdigueira
   Alli n'aquella ladeira,
   Não me fazeis o favor
   De me dizer se a bréjeira
   Passou aqui a ribeira?

   --Olhai que d'essa maneira
   Até um dia, senhor,
   Perdereis a caçadeira,
   Que ainda é perda maior.

   --Que me importa, lavadeira!
   Aqui na minha algibeira
   Trago dobrado valor.
   Assim eu fôra senhor
   De levar a vida inteira
   Só a vêr o meu amor
   Lavar roupa na ribeira...

   --Talvez que fosse melhor,
   Vêr... coser a costureira!
   Vir, de ladeira em ladeira,
   Apanhar esta canceira
   E tudo só por amor
   De vêr uma lavadeira
   Lavar roupa na ribeira...
   É escusado, senhor!

   --Boas noites... lavadeira!

   --Boas noites, caçador!..

Messines.

     *      *      *      *      *




GASPAR


   Ora se não sei eu quem foi teu pai!
   Fidalgo: sei perfeitamente bem.
   O que eu não sei, Gaspar! é o que vem
   N'esta vida fazer quem já lá vai.

   Já se vê que é aos paes que a gente sái.
   Tal pai, tal filho; sim, duvída alguem
   Que um pai se é como o teu, homem de bem,
   Tu és homem de bem como teu pai?

   D'isto não ha quem possa duvidar.
   Mas queres um conselho que eu te dou?
   Não mexas n'isso... cala-te, Gaspar!

   Que eu, cá por mim, bem sabes como eu sou,
   Mas é que outro talvez mande tirar
   Certidão de baptismo a teu avô.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




   Deixa que ao romper d'alva o cravo abrindo,
           Á rosa envie o aroma;
   E lá quando alta noite a lua assoma,
           O rouxinol carpindo!

   Que pela face a lagrima resvale
           De quem no exilio geme;
   E quando a propria sombra o homem teme,
           Que a mãi seu filho embale.

   Deixa que ao espaço immenso os olhos lance
           O sol antes que expire;
   Que pelo norte a bussola suspire
           E nelle só descance.

   Amam leões e tigres. Não ha nada,
           Anjo! que a amor se esconda.
   Beija a pomba o seu par; e abraça a onda
           A rocha inanimada.

   Deixa que a nuvem negra tolde a lua
           Se a leva a tempestade;
   Deixa que eu te ame a ti, cara metade,
           D'esta alma toda tua!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




CARTA


   Maria! vêr-te á porta a fazer meia,
   Olhando para mim de vez em quando,
   É o que n'esta vida me recreia.

   Acordo até de noite suspirando
   Por que rompa a manhã e tenha o gosto
   De te vêr já tão cedo trabalhando.

   Desde pela manhã até sol-posto
   Que não tens de descanço um só momento;
   Por isso tens tão bella côr de rosto.

   E eu pallido, Maria! O pensamento
   Não é trabalho que nos dê saude,
   Esta imaginação é um tormento.

   Que bello tempo aquelle em quanto pude
   Levar, como tu levas, todo o dia
   N'essa vida chamada ingrata e rude!

   Nunca soube o que foi melancolia,
   Nunca provei as lagrimas salgadas
   Com que a nossa alma as penas allivia;

   Andava sim por essas cumiadas
   Ao sol, á chuva, muita vez, sósinho,
   Vendo os valles, das rochas escarpadas;

   Descendo pelo córrego estreitinho,
   De pontal em pontal, cortando o matto,
   Pelas chapadas, fóra de caminho;

   Mas não era que já o teu retrato
   Me andasse a mim no coração impresso,
   Onde hoje o trago no maior recato,

   E um desengano teu que não mereço
   Me tivesse tirado a fé tão dôce
   D'alcançar algum dia o que appeteço.

   Não foi, não, a paixão que assim me trouxe
   Tão erradio a mim, digo a verdade
   E nem eu te negava se assim fosse.

   É que a gente na sua mocidade
   Não cabe em si, não pára de contente,
   E assim fui eu na flôr da minha idade.

   Tu eras n'esse tempo simplesmente
   A flôr que vai nascendo e mais valia
   Seres tão tenra ainda e innocente.

   Já esse lindo pé que tens, Maria!
   Esse quadril tão largo, e cinta estreita,
   Me não vinha á idéa noite e dia;

   Esses encontros de mulher perfeita,
   Esse peito redondo e arqueado
   Como o de pomba farta e satisfeita.

   Talvez vivesse então mais socegado,
   Ou já que minha sorte é sempre triste
   Ao menos não andasse enfeitiçado.

   Esse bello pescoço, não existe
   Outro assim torneado: o rosto é lindo
   E a tão meiga expressão ninguem resiste.

   A bocca é tão vermelha que, em te rindo,
   Lembra-me uma romã aberta ao meio
   Quando já de madura está cahindo.

   Esses olhos azues... que olhar! Receio
   E desejo estar sempre a contemplal-o;
   Não ha mais dôce e mais custoso enleio:

   Eu não oiço fallar então, nem fallo
   De enlevado que estou e, juntamente,
   Gemendo e abafando os ais que exhalo.

   Oh nuvem da manhã resplandecente,
   Manto real de sêda delicada,
   Cada fio um grilhão que prende a gente.

   Bem podias, Maria! andar tapada
   Só com o teu cabello, á semelhança
   Do sol em nuvem de manhã doirada.

   É tudo encantador. A gente cança,
   Cança de estar olhando e sempre vendo
   Um novo encanto a cada olhar que lança.

   E se essa linda voz nos sái dizendo
   As mimosas palavras que costuma,
   Sente-se a gente logo derretendo;

   Que além d'um rosto tão perfeito, em summa
   Coube-te em sorte um coração perfeito
   E em ti não ha, Maria! falta alguma.

   Oh que ditoso, alegre e satisfeito
   Não viverá o homem que algum dia
   Sentir pular-te o coração no peito,

   E que em deliciosissima agonia,
   Vendo-te já os olhos desmaiando
   Como desmaia o céo á luz do dia,

   Nas azas da ventura atravessando
   Os espaços d'um extasi ineffavel
   Abraçado comtigo fôr voando
   Lá para onde tudo é bello e estavel!

Messines.

     *      *      *      *      *




   --Dá-me esse jasmim de cera,
         Minha flôr?
   --Mas e depois se lh'o dera,
         Meu senhor?

   --Depois? era uma lembrança.
         --Mas de quê?
   --D'uma tão linda criança,
         Já se vê.

   --Oh tão linda! Mas, parece,
         Sendo assim,
   Que inda quando lhe não désse
         Tal jasmim...

   --Não me esquecia, de certo.
         --Nunca já?
   --Nunca.--Nunca, é muito incerto,
         Mas... vá lá.

   --E a rosa, que bem lhe fica,
         Dá-m'a, flôr?
   --Oh a rosa, a rosa pica,
         Meu senhor!

Messines.

     *      *      *      *      *




MARGARIDA


   Oh que formosos dias, Margarida!
   Esses da tua vida;
   E que nublados
   Meus dias desgraçados!

   Nasci tambem assim risonho e meigo,
   Mas hoje apenas chego
   O calix da ventura
   Á bocca ancioso,
   Torna-se a agua impura
   E o liquido que bebo
   Venenoso,
   Sim, venenoso o liquido que bebo.

   Nem eu concebo
   Como Deus me creasse
   Para tormento eterno;
   Elle que tão affavel, meigo e terno
   Te beija a ti a face
   E te embala no collo, Margarida!
   A mim dar-me esta vida...

   Mas vejo á sombra d'altos edificios
   Miudissimas flôres
   De tão subtís e delicadas côres
   Que se o sol lhes chegasse
   Talvez que nem resquicios
   Lhes ficasse.
     Com uma d'essas azas, estendida,
   Me tapavas tu todo,
   E d'esse modo,
   Com esse escudo,
   Eu ria-me de tudo
   E levava esta vida alegremente.
   Tenho essa fé.

   Vejo tambem a flôr que nasce ao pé
   D'agua corrente,
   Ir tão suavemente
   Levada pela agua!
   Talvez até sem magua
   De deixar sua mãi.
     D'esse modo tambem,
   Amparando-me tu a mim nos braços,
   Eu seguia-te os passos,
   Fosse por onde fosse;
   E d'essa sorte
   Até a morte
   Me seria dôce.

Messines.

     *      *      *      *      *




NO LEITO NUPCIAL


   Dorme, estatua de neve,
   Vergontea de marfim!
   Tocar que impio se atreve
   No que é sagrado assim?

   Dois são: o mais, mysterio
   Vedado á terra. Deus
   Talvez do solio ethereo
   Nem baixe os olhos seus.

   Respeita-os, tapa-os, como
   Japhet e Sem, o pai...
   Pende, sagrado pomo!
   A vista ergue-se e cai.

   Ergue-se e cai, conforme
   A lei, que o manda assim.
   Ergue-se e... Dorme, dorme,
   Vergontea de marfim!

   Mas dize: o espelho a imagem
   Te estampa mal te vê;
   Beija-te o seio a aragem,
   Doira-te o sol; porquê?

   Não segue acaso a sombra
   Teu corpo sempre, flôr!
   E pois, porque te assombra
   Meu insensato amor?

   Ás vezes passas tremula
   Como sagrada luz;
   E os olhos dizem: vemol-a
   Como no alto a cruz.

   Perdoa se isto exprime
   Maldade aos olhos teus;
   Perdoa-me se é crime...
   Amo tambem a Deus.

   E á tarde quando o albergue,
   No solitario val,
   Incenso queima e se ergue
   D'Abel o fumo igual;

   Da pomba solta o vôo,
   Baixa-me um olhar teu
   E dize-me: perdôo;
   Sim, tudo aspira ao céo!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




A MINHA MÃI


   Patria! berço d'amor, que a alma embala
   Em quanto a luz vital nos illumina,
   E onde só descançado se reclina
   Quem, longe d'ella, dôr contínua rala...

   Se n'essa essencia, mãi! que a flôr exhala
   Na essencia d'uma flôr d'essa collina,
   Vês lagrimas d'amor que dentro a mina,
   Com saudades de quem do céo lhe falla:

   Se quando, o céo buscando, o fumo ondeia,
   Quando esse valle o sol deixa indeciso,
   Vês como fumo e flôr aspira, anceia

   Um pai, um Deus, um céo, um paraiso,
   Ah! tendo eu tudo, tudo, em minha aldeia,
   Vê tu se labio meu desfolha um riso!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




BEATRIZ


   Tu és o cheiro que exhala
   Ao ir-se abrindo uma flôr,
   Tu és o collo que embala
   Suas primicias d'amor.

   Tu és um beijo materno,
   Tu és um riso infantil;
   Sol entre as nuvens do inverno,
   Rosa entre as flôres d'abril.

   Tu és a rosa de maio,
   Tu és a flammula azul,
   Que atam á flecha do raio
   As nuvens negras do sul.

   Tu és a nuvem d'agosto,
   Meu alvo vello de lã!
   Tu és a luz do sol-posto,
   Tu és a luz da manhã.

   Tu és a timida corça
   Que mal se deixa avistar;
   Tu és a trança que a força
   Do vento leva no ar.

   És a perola que salta
   Do niveo calix da flôr;
   És o aljofar que esmalta
   Virgineas rosas d'amor.

   És a roseira que a custo
   Levanta os cachos do chão,
   És a vergontea do arbusto,
   Anjo do meu coração!

   Tu és a agua das fontes,
   Tu és a espuma do mar,
   Tu és o lirio dos montes,
   Tu és a hostia do altar.

   És o pimpolho, és o gommo,
   És um renovo d'amor;
   Tu és o vedado pomo...
   Tu és a minha Leonor...

   Tu és a Laura que eu amo,
   E a minha Taboa da Lei,
   E a pomba que trouxe o ramo,
   E a margarida que achei.

   És o lirio, és a bonina
   Dos valles do meu paiz;
   És a minha Catharina...
   És a minha Beatriz!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




INNOCENCIA


   Encolhe as azas, que te abrazas, louca!
   O fogo mata a quem o gera, attende;
   Foge e, se a vida te aborrece, estende
   Um braço aos anjos, que a distancia é pouca.

   Porque uma nuvem, onda transitoria
   Do mar immenso, vem pousar na serra,
   Não fica a nuvem pertencendo á terra:
   Tu és o anjo que desceu da gloria.

   Estranhas forças para ti me attrahem;
   E ás vezes cedo, tua cinta enleio;
   Teus olhos beijo; mas, contemplo o seio,
   Tua alma dorme, e os meus braços cahem...

   Desfallecidos, flôr celestial!
   Como ante um berço cahe a foice erguida,
   Se ha n'elle mais do que uma simples vida,
   Se ha innocencia que mil vidas val.

   Oh! não: teus labios o meu fel não provem:
   Outros os lirios d'essa face esmaguem;
   D'outros mãos impias teu sorriso apaguem,
   Em quanto os labios tuas graças louvem.

   Já no meu berço d'innocencia pude
   Pesar as joias, que hoje em vão te invejo:
   Provei os favos de illibado pejo,
   Sei o que perde quem o vicio illude.

   Alcantil ingreme, onde o raio é certo,
   Contém mais seiva, que inda o musgo cria:
   Quanto de fertil em nossa alma havia
   Só deixa o ermo da saudade aberto.

   Cahir no abysmo de intimos pezares
   D'essas alturas onde mal te vejo,
   O ponto estava derreter n'um beijo
   O fio de oiro que te manda aos ares.

   N'esses dois cofres, n'esse collo aonde
   Tantas riquezas enterrei ciumento
   (E que alta noite vela o pensamento
   Pelo crystal que o coração te esconde)

   Em oiro em barra, fina prata e quanto
   Coalha o vasto e opulento Oriente,
   Fôra em ruinas encontrar sómente
   Carvão, se um dia te quebrasse o encanto.

   Casta innocencia, de Deus filha e bella
   Entre as mais bellas! virginal aroma!
   Rosa ineffavel, que, se á luz assoma,
   Haste e raiz apodreceu com ella!

   Sol, que uma vez em nossa vida passas!
   Flôr, que uma e neutra, como Deus, não gera;
   Que se abre morre, mas sem prole, inteira
   Com todo o côro das virgineas graças:

   Ao vêr-te, embora meu olhar te envia
   O impio incenso de Nadab, ajoelho...
   Rosa da face e, não só rosa, espelho
   Da face occulta de quem espalha o dia!

   Se por teus membros orvalhadas flôres
   Prodigas mãos da formosura entornam,
   Flôres mais bellas o teu seio adornam...
   Vós, lirios d'alma, virginaes amores!

   O céo me encanta, como encanta o inferno.
   Mysterio... espaço... mente exploradora!
   Morre nas mãos o que a nossa alma adora
   --Vago, impalpavel, infinito, eterno!

Evora.

     *      *      *      *      *




   A Escriptura Sagrada
   Lá diz que uma mulher má
   Não ha fera, não ha nada
   Peor no mundo: e não ha.

   Uma lá da minha aldeia,
   Que era muito impertinente,
   Muito má (e muito feia)
   Morre um dia de repente.
   Morreu; desgraçadamente
   Mais tarde do que devia;
   Mas em summa toda a gente
   Teve a maior alegria.

   Passados annos (é boa!)
   Foi-lhe preciso ao coveiro
   Abrir a cova, e achou-a
   Ainda de corpo inteiro,
   Ainda rosas na face,
   Ainda signaes de vida...
   Milagre! coisa sabida;
   Pois mais fresca que uma alface
   Ha tanto tempo enterrada,
   Devendo estar reduzida
   A pó, terra, cinza e nada...

   Vem dar parte; e corre a vêl-a
   O povo atraz do prior;
   E passam logo a trazel-a
   Em cima do seu andor
   E a pol-a n'uma capella
   De grande veneração;
   (Elles ás costas com ella,
   E elle a cantar canto-chão;)
   Mas seja lá o que fôr,
   O que é certo e mais que certo
   É que santa como aquella
   E nem de mais devoção,
   Não ha por alli tão perto.

   E dizem que não ha santos
   Como nos tempos passados!
   E cá opinião minha
   Que muitos (quantos e quantos!)
   Que ahi morrem desprezados,
   Se não são canonisados
   É que está cheia a _Folhinha_.

Messines.

     *      *      *      *      *




A UM NUNO

Provando a existencia de Deus a pobres camponezes


   Ora a provar que ha Deus, Nuno! isso é teima:
   Pois ha alguma ovelha no rebanho
   Que não saiba que só a mão suprema
   Creava um animal d'esse tamanho!

     *      *      *      *      *




A ***


   Pois se como sempre fomos
         Somos
   Pétalas da mesma flôr,
   E o que eu sinto, ou eu me illudo,
         Tudo
   Tambem sentes, gosto e dôr;

   Que te arraza os olhos d'agua?
         Magua
   Em que eu não deva tocar?
   Oh! mas se ha quem a suavise,
         Dize,
   Vou-lhe um suspiro levar.

   Não se alcança, não se avista,
         Dista
   D'aqui muito o allivio, ou não?
   Dos teus olhos muito; e pouco,
         Louco!
   Pouco do teu coração.

   Sei o que vai em teu seio;
         Sei-o
   Porque em materia d'amor,
   Debalde os labios se calam!
         Fallam
   Ainda os olhos melhor!

Batalha.

     *      *      *      *      *




LUZ DA FÉ


   Tu, sol! já não me alegras
   Como alegravas, não:
   Vós, sim, ó nuvens negras,
   Relampago e trovão!

   Quando o trovão me aterra,
   Recordo-me de Deus;
   Abalo cá da terra
   E vou por esses céos:

   E lá n'essas alturas,
   Por onde só a fé,
   Em regiões tão puras,
   Nos deixa tomar pé;

   Voar, pairar nos ares
   Como uma aguia cá,
   De lá só vejo os mares,
   E é porque a luz lhes dá.

   O mais como se apanha
   E empolga com a mão,
   Seja a maior montanha,
   Seja a maior nação;

   O mais fica no fundo
   D'esse infinito mar;
   O mais pertence ao mundo,
   É escusado olhar.

   Deus deixa ás creaturas
   Cá baixo a sua cruz,
   E fecha as almas puras
   N'um circulo de luz.

   As chagas, as miserias
   Cá d'este lamaçal,
   Nas regiões ethereas,
   Lá não se avista tal.

   É só a luz, que foge,
   Mais uma irmã que tem
   --A alma, que até hoje
   Não a prendeu ninguem;

   São essas duas luzes
   (Qual d'ellas tão subtil
   Que ás forcas e ás cruzes
   Do despota mais vil,

   Se escapam de tal modo
   Que é de o fazer raivar)
   Cá d'este mundo todo
   O que se vê brilhar!

   Porque uma e outra aspira
   Continuamente ao céo,
   A alma que suspira,
   E a luz que Deus nos deu.

   Porque uma e outra é pura,
   Perpetua e immortal;
   E a sua formosura,
   Não ha nenhuma igual.

   Quem é, ó luz formosa,
   Ó minha bella irmã!
   Quem é que faz a rosa
   Abrir pela manhã?...

   Eu amo-te e (as trevas
   Não teem esplendor!)
   Tu só é que me levas
   O tempo e o amor.

   Mas eu estimo o raio
   E gósto do trovão,
   Por vêr que quando cáio
   É que me elevo então.

   Por vêr que em tendo medo
   Mais se me aviva a fé;
   E a fé, não ha rochedo
   Firme como ella é.

   Por cima da desgraça
   Ou seja do que fôr,
   Ella, não olha, passa
   De fito no Senhor!

   A essa luz divina,
   Ó luz! é que tu és
   Tão pura e crystallina
   Como o Senhor te fez.

   Por isso a noite escura,
   Ah! se eu a preferi
   Á tua luz tão pura,
   É por amor de ti!

Messines.

     *      *      *      *      *




RESPOSTA

A A. DO QUENTAL


   Tal é a confiança que te inspira
   Estes reis, estes povos, esta gente,
   Que é para o céo que appella e se retira
   Tua alma já de triste e descontente.

   Mas Deus então seria ou impotente
   Ou seria um Deus barbaro: mentira!
   Não póde suspirar eternamente
   Quem ha já tantos seculos suspira.

   Vai ganhando terreno a luz brilhante,
   Luz toda liberdade e toda amor
   Que ha-de salvar o mundo agonisante.

   A idéa, esse Verbo creador
   Ha-de fazer que um dia e não distante
   Só o nome de imperio inspire horror.

Messines.

     *      *      *      *      *




   Meu casto lirio,
   Terno delirio,
   Gloria e martyrio
   Do meu amor!
   Amo-te como
   A haste o gomo,
   O labio o pomo
   E o olho a flôr.

   Se ao meu ouvido
   Sôa um rugido
   Do teu vestido,
   Que ouço roçar;
   Que som me vibra
   Não sei que fibra
   Que me equilibra
   A mim no ar!

   E que harpa santa
   É que me encanta
   E enche de tanta
   Consolação,
   Quando uma falla
   Terna se exhala
   D'onde se embala
   Teu coração!

   Quando te vejo
   D'um simples beijo
   Córar de pejo,
   Mudar de côr,
   Que susto é esse
   Que me parece
   Te empallidece,
   Rosa d'amor!

   Quando no leito,
   Teu niveo peito
   Sonho que estreito
   E aperto ao meu;
   Vendo tão perto
   O céo aberto,
   Porque desperto...
   Anjo do céo!

   Não fujas, rosa!
   Não fujas, goza
   Manhã mimosa,
   Manhã d'amor;
   De folha em folha
   A flôr se esfolha
   Bem cedo, e olha
   Que és como a flôr!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




VENTURA


   O sol na marcha luminosa vôa
   Lançando á terra magestoso olhar;
   Passa cantando quem o ar povôa
   E a praia abraça venturoso o mar.

   No bosque o vento dôce canto entôa,
   Ouvem-se em côro as multidões cantar;
   Que a um só triste o coração lhe dôa,
   Que eu seja o unico a soffrer, chorar...

   Por ti, saudade... de quem vai tão perto
   E a quem dos olhos e das mãos perdi
   N'este tão ermo lugubre deserto!

   Por ti, ventura... que uma vez senti;
   Por ti, que ás vezes a meu peito aperto
   E... o peito aperto sem te vêr a ti!

Evora.

     *      *      *      *      *




   Arida palma
   Tem seu licôr,
   Tem como a alma
   Tem seu amor;
   Tem como a hera
   Tem seu abril,
   Tem como a fera
   Tem seu covil.

   Tem toda a planta
   Que o sol queimou
   Lagrima santa
   Que a orvalhou,
   E o passarinho
   Que hontem nasceu
   Lá tem seu ninho
   Que a mãi lhe deu.

   Só eu na magua
   Do meu penar
   Sou como a agua
   Que anda no mar,
   Sou como a onda
   Que á busca vem
   D'onde se esconda,
   E onde, não tem!

   Folha revolta
   Que anda no chão,
   Lagrima solta
   Do coração;
   Corpo sem vida,
   Haste sem flôr,
   Folha cahida
   Do meu amor.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




A UNS OLHOS AZUES


   Cahe a folha da rosa pudibunda,
   Cahe a rosa da face virginal,
   Cahe das nuvens a aguia moribunda,
   Cahe o sol na montanha occidental.

   Cahe a onda na praia, cahe do somno
   O poeta na luz; e cahe das mãos
   Dos despostas o sceptro, elles do throno,
   Como a seus pés cahiram seus irmãos!

   Cahe dos labios o riso; cahe dos olhos
   A lagrima tambem, que d'alma sahe;
   Cahe a rocha no mar, cahe nos abrolhos
   A flôr de liz; de louro a folha cahe.

   Cahe do céo a centelha incendiaria,
   A nuvem cahe se um sopro Deus lhe dá,
   Cahe ante o dia a noite solitaria
   Como o falso Dagon ante Jehovah.

   Cahe tudo, flôr! cahe tudo; eu só não cáio:
   Mais do que um rei, que o sol, igual a Deus,
   Cahir, mulher! só posso á luz d'um raio
   Se elle cahir do céo dos olhos teus!

Luso.

     *      *      *      *      *




HERESTA


   Que magua ou que receio
   Dos olhos te desata
   Aljofares de prata
   No jaspe do teu seio?

   Bem intima ser deve
   A pena que te opprime,
   Flôr tenra como o vime,
   Flôr pura como a neve!

   --Compunge-te isso, dóe-te
   Vêr esmaltando o calix
   Da erma flôr dos valles
   O balsamo da noite?

   Se aos olhos nos affluem
   As lagrimas, parece
   Que a dôr nos adormece,
   E as maguas diminuem.

   --Heresta! pois inclina
   Na minha a tua face
   E deixa me repasse
   Teu balsamo, bonina!

   Abraça-me, divide
   Commigo esse consolo,
   Enlaça-te ao meu collo
   Como ao olmeiro a vide!

   Ás vezes tambem quando
   Os olhos se me estendem
   Ás luzes, que se accendem
   No templo venerando;

   Tão intima saudade,
   Tão intimo desejo,
   D'um mundo, que não vejo,
   Me inspira a immensidade...

   Que o pranto se agglomera
   Na palpebra, onde morre;
   Sim, gela-se, não corre,
   Tal é a dôr que o gera!

   --É Deus que a si te aspira,
   É Deus que ao céo te chama;
   Que em tudo amor derrama,
   A tudo amor inspira!

   Canta-o, o justo, o santo!
   E a flôr que o campo adorne
   Thuribulo se torne
   Mal te ouça o dôce canto.

   --Inspira-o pois, inspira,
   Virgem de intacto pejo!
   Seja um teu riso o harpejo
   E um teu cabello a lyra!

         ----------

   O sol já da montanha
   Te disse adeus! adeus!
   E a cupula dos céos
   Ficou pallida e estranha.

   E aquella, que a bondade
   De Deus em si reflecte,
   Em quanto ao sol compete
   Mostrar-lhe a magestade,

   Á luz extrema d'hoje
   Ergueu livida a face
   Com medo que avistasse
   Quem busca, e de quem foge.

   Fluxo e refluxo eterno
   D'alma contradictoria,
   Que após continua gloria,
   Anda em continuo inferno.

   Poeta! é copia tua,
   Supplicio igual te inquieta.
   Mas que alma de poeta
   Teu seio arqueia, oh lua?

   Amor, amor como este,
   Visão timida e casta
   Em giro eterno arrasta
   A lampada celeste.

   Como esse que a deshoras
   A ti te ergue a cabeça
   E aos ermos te arremessa
   Em busca do que adoras.

   Mas, ah! pallido globo!
   É pio d'ave nocturna,
   Echo em alguma furna
   Do uivo d'algum lobo?

   Ouço uma voz... escuta:
   É ella a voz que se ouve?
   Ou monge que inda louve
   A Deus, n'alguma gruta!

   Quem lá em baixo á escarpa
   D'um ingreme penedo
   No tremulo arvoredo
   Entorna os ais d'uma harpa?

   É ella a minha Heresta,
   A minha branca ermida
   Do ermo d'esta vida,
   Mais erma que a floresta?

   Tu, lua, que no val
   D'Aialon paraste,
   Já viste em sua haste
   Suspenso lirio igual?

   Não é, não é mais bella
   A rosa entre os abrolhos,
   Nem ha como os seus olhos
   No céo nenhuma estrella!

   É á luz d'uma alvorada,
   Apenas desabrocha,
   Nos angulos da rocha
   Vêl-a despedaçada!

   Vós, lobos! ide em bando,
   Trepai pelo rochedo,
   Uivai, mettei-lhe medo,
   Levai-a recuando!

   Que faz quem se aproxima
   D'um precipicio, diz-m'o?
   Que buscas tu no abysmo
   Se o céo é lá em cima?

   Não tarda muito, creio,
   Que acabe esta ancia nossa,
   E Deus unir-nos possa
   No seu eterno seio.

   É lá que a alma falla,
   Lá que o amor se mede,
   Que em brilho o sol excede,
   E em gloria a Deus iguala!

   Na nuvem do futuro
   Teus vagos olhos prega!
   Depois de noite negra
   Vem sempre um céo mais puro.

         ----------

   E agora, se o desejo
   Te satisfiz, em premio
   D'um canto d'alma gemeo,
   Um gemeo e dôce beijo!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




FRAGMENTO


   ..........................................

   Deixal-o: os olhos fecho á luz e quero...
   Quero-te, oh sonho, se és doirado e lindo:
   Mais que a teus fachos, pedagogo austero!
   Que me condemnas em chorando e rindo.
   Sempre olhos fundos, sempre esse ar severo...
   Razão! não te amo; mas a ti, bemvindo,
   Tu que os conselhos nunca, amor! lhe tomas;
   Dás luz á lua, dás á rosa aromas.

   Oh! ha tres vistas com que as coisas vemos;
   Ha tres razões que as coisas determinam;
   Uma a dos olhos; outra a que escondemos
   N'isso ante que os alemos se inclinam;
   Outra a que dentro no coração temos,
   Que os limites do espaço só terminam:
   Coube a primeira em sorte á borboleta;
   A outra ao homem; a terceira ao poeta.

   Mas será só poeta quem faz versos?
   Não é a flôr poeta que o sol canta?
   Não cabe aos ais tão intimos, dispersos
   Do cantor triste nome e gloria tanta?
   Esses aereos tão mimosos berços,
   Que, excepto o homem, o furor quebranta
   A quanto é fero e sanguinario, acaso
   Cada um d'elles não é um parnaso?

   Mais poesia em pobre margarida,
   Que aos pés se pisa, enthesoirada vejo,
   Que em muita madreperola polida
   Que as cinzas guarda de finado harpejo.
   Dize-me, pomba! que no ar sustida
   Vens como a nuvem coroar d'um beijo
   Quem teus desvelos maternaes comparte:
   Camões excede-te em engenho e arte?

   Vaidade humana! Do que é simples, claro,
   Fazem mysterio; dão-lhe um nome e basta:
   Como esse eunucho sacerdocio avaro
   Que da verdade as multidões afasta...
   Mas a verdade não é pedra d'ara
   Nem arca-santa que só certa casta
   Tem privilegio de levar ao hombro
   Ou vêr de perto, sem morrer d'assombro.

   Padre, ministro do Crucificado
   É bom ferreiro afeiçoando o ferro
   Com que ha-de prestes ir rompendo o arado
   Os campos d'este secular desterro.
   Melhor explicam um lugar sagrado
   Bigorna e malho, que explica o berro
   De bonzo inutil; que asperos abrolhos
   Não viram nunca seus inchados olhos.

   Apostolo é o pai que se afadiga
   Só para que descance o filho amado;
   Apostolo é a rocha em que se abriga
   Ave agoureira e pobre desgraçado;
   Apostolo é a lagrima que amiga
   Cahe pela face em peito amargurado;
   E esse monstro do céo que solitario
   Correu o mundo á busca do Calvario.

   E assim vós outros, falsos sacerdotes!
   Que a mesma crença sustentar devêreis,
   Poetas vos chamaes se em ôcos motes
   Sabeis vasar combinações estereis?
   Monges! tendes o habito; se os dotes,
   Os doze dons do Espirito tivereis,
   Crêreis que é mais poeta o dôce favo
   Que a abelha fabríca em mato bravo.

   Fechei a minha bocca largo espaço
   Para vêr e pasmar; eu não podia
   Tirar os olhos do tributo escaço
   Que paga o albergue quando acaba o dia.
   Pelo filhinho em maternal regaço
   Como ave em ninho a balançar, medía,
   Não essa Iliada a compasso austero,
   Mas a de Christo, a do celeste Homero.

   Lia esse livro que anda encadernado
   Em pelle humana e embrulhado em pranto,
   Mas para bençãos, para amor dictado
   E quanto ha puro, quanto ha bello e santo:
   Livro que o impio soletrou tocado,
   Se o impio os olhos pôde erguer a tanto;
   Mas que a moirama só conserva vivo
   Porque não morre o immortal captivo.

   Não morre: eterno como a fonte d'onde
   Dimana a luz, a vida, amor e tudo,
   Que amostra a terra, amostra o mar, e esconde
   O céo, o espaço, o infinito mudo...
   O mundo mudo! para quem? responde,
   Valente martyr! que o pesado escudo,
   Com que a verdade os olhos encobria,
   Morreste mas quebraste á luz do dia.

   «Existe um pai commum, que a todos ama
   E d'elles só juiz a si reserva
   Punil-os de seu mal; o sol derrama
   Por cedro erguido e enterrada herva;
   Desarma o laço que a perfidia trama,
   Ou n'elle a prende e faz cahir; enerva
   Braço que se ergue contra irmão; fecunda
   Semente que não cahe de mão immunda.

   «Diante d'elle as obras apparecem
   Taes como as gera o intimo do peito:
   Basta o amor do bem, se as mãos fallecem;
   Sem esse amor é nada o grande feito.
   Embora os homens de soltar se esquecem
   Quem chora escravo; porque, em seu conceito
   Deixe chorar quem purpuras arrasta,
   Cante que é livre na verdade, e basta.»

   Ella o resto fará; porque a seu braço
   Reis não resistem, não resistem povos:
   Um raio a nuvem parte e deixa o espaço
   Coalhado d'astros que parecem novos:
   Põe ao sol, que o fecunde, o simples traço,
   Como a grande avestruz os grandes ovos;
   E quem depois no mundo a luz lhe apaga?
   Ninguem apaga a luz que o mundo alaga.

   Sacerdocio embusteiro as mãos lhe prega
   Em tronco immovel que seus labios gele;
   Á justiça profana o justo entrega
   (Sua irmã gemea que a verdade expelle:)
   Já das almas senhor o rosto alegra,
   Já morto o canta, sepultado e elle
   Só o consome o incendio que já lavra
   De bocca em bocca, o incendio da palavra.

   Nenhum de nós o viu andar prégando,
   Nenhum seu olhar vago lhe notámos,
   Nunca o vimos no ermo a Deus orando,
   Nunca a mão estendida lhe apertámos;
   E por todos seu nome vai passando,
   Todos, os seus preceitos, decorámos...
   E que vá vêr-lhe a campa ao Oriente
   Quem os olhos da carne tem sómente.

   Que é um tumulo acaso, esse tributo
   Pago pela materia á vil materia?
   Quem vai na campa alliviar o luto
   Se a vista alonga á amplidão aerea?
   Quem a copia de Deus rebaixa a bruto,
   E a mais que bruto a immortal, etherea,
   Celeste pomba, que em seu vôo a vida
   Em factos deixa ás almas esculpida?

   Não me embala inda Homero nos seus braços
   E me pinta nas mãos a natureza?
   Não lhe ouço eu inda a voz...como ouço a espaços
   A voz da grande Fama portugueza...
   Quando me apraz olhar para os pedaços
   D'este grande gigante que a fraqueza
   Expoz aos coices...leão moribundo...
   O rei antigamente d'este mundo?

   Eu não sou dos que a patria sua adoram
   Como adora o seu deus o fiel crente.
   Vejo que todos n'uma patria moram
   E sobre todos vejo um céo sómente:
   Mas ame cada qual; que se outros choram
   Nas mãos dos tigres que só comem gente,
   Tambem meus olhos choram seu tormento
   D'onde quer que seus ais me traga o vento.

   Deixai ir em seu transito divino
   Desde a Cruz do Calvario na Judêa,
   Té á ponta da espada d'aço fino
   Desembainhada em Italia, o tempo, a idêa.
   Deixai andar a vêr o peregrino
   Onde a ventura abunda, onde escassêa
   Para vos dar, no oiro (Fé e Esperança!)
   Rei e pastor nas conchas da balança.

   Ha-de vir esse dia; e se a figueira
   Em abrolhando perto vem o estio,
   Não longe está: a cobra carniceira
   De mil roscas e lugubre assobio
   Que terra come, e come a terra inteira,
   Se á terra inteira se enrolar, despiu
   A pelle enorme com bastantes dôres
   Esfolada por tres imperadores...

   Eu não sei qual mais chore; se essa sêde
   De sangue insaciavel dos tyrannos,
   Ou se é a escuridão vossa que eu hei-de
   Antes chorar, oh miseros humanos!
   Que solimão vos deram, loucos! vêde:
   Não vale a gloria que vos faz ufanos
   Um só pingo de sangue, um só, vertido,
   Um gemido de mãi, um só gemido!

   É do sangue e das mães que eu fallo; e certo,
   Que ha na vida mais santo? O sangue é vida;
   E as mães fonte da vida: eu nunca esperto
   Esta lampada d'alma, suspendida
   Na abobada eterna e que tão perto
   Parece ter a origem............
   ................senão quando
   Vejo essa cara imagem suspirando.

   Eu amo as mães, seu nome é terno e dôce;
   Sim, amo as mães: nossa alma d'ellas nasce:
   Quem n'um collo de mãi cahiu, achou-se
   D'um pulo ao pé de Deus: a alma pasce
   Lirios celestes vendo-as; e seccou-se,
   ........................................
   Do casto e candido a sagrada fonte,
   Se ella no tumulo encostou a fronte.

   Essa é a virgem-mãi, voz suavissima
   D'esse cantico eterno--o Evangelho;
   A Virgem... Mãi... de Deus! virgem purissima,
   Cheia de graça e de justiça espelho.
   Oh poesia, poesia altissima
   Como o fecho do empyreo! eu me ajoelho
   E beijo a tua base, harpa celeste!
   O coração, a corda que nos déste.

   Em que labios se bebem mais delicias,
   Em que face de virgem se desatam
   Rosas mais puras d'intimas primicias,
   Que nas que por dar vida a nós se matam?
   Sempre a bem nosso, a nosso amor propicias
   Na menina dos olhos nos retratam;
   E nunca premio vil em paga pedem
   De quanto, tanto d'alma, nos concedem.

   Na montanha da Fé, mulher formosa
   Se ante mim a meus pés desenrolasse,
   Como o demonio, a vastidão pasmosa
   Que elle dava a Jesus se o adorasse;
   E me pedisse em premio uma só coisa
   --Ás mãos de minha mãi furtar a face;
   Eu lançava-lhe o cuspo, essa tesoira
   Que em mil bocados faz a vacca-loira.

   Vêde-a ao berço, sofrega de vida,
   Que a sua é pouca para a dar ao filho;
   Ella em cama de espinhos, mal vestida;
   Elle enfaxado, em berço de tomilho;
   Ella em contínua, azafamada lida,
   Elle vendo se apanha á luz o brilho...
   Já descobrindo em tão tenrinha idade
   Que toda a sua sêde é de verdade.

   E esses lobos que em duas patas andam
   Para ter sempre em guarda as outras duas;
   Que a monte sahem só, e só debandam
   Como os ladrões, á noite, pelas ruas;
   A empecer que os animos se expandam,
   Que a luz se espalhe, e que as imagens tuas,
   Bom Deus! de imagens passem: e que admira...
   Sem o sopro que ao barro a vida inspira!

   Já se iam vendo os campos relvejando
   Cá da banda do sol n'este horisonte
   Por onde já n'um mar se andou nadando
   E onde apenas se encontra secca fonte;
   E eil-os já os hypocritas minando,
   Cortando ao povo hebreu na marcha a ponte
   Só para que o manná que o céo lhe chove
   No deserto dos reis jámais nem prove.

   Retalhou-lhes o labio omnipotente
   O habito comprido, a manga larga,
   Olhar submisso mas lugar na frente;
   E nem despido o monstro a presa larga.
   «São sepulchros caiados, vêde, oh gente!
   Por dentro podridão:» em voz amarga,
   Em voz de grande horror, de grande abalo,
   Christo clamou d'aquelles de quem fallo.

   «Dizimam-te o coentro e a arruda,
   Mas sua consciencia é generosa.
   Chamam-se mestres... de sciencia muda,
   A sciencia da cobra venenosa:
   Olhai, não espia a fera, espreita, estuda
   Toda a volta do dia, mais manhosa,
   Que essa raça de viboras, que espalha
   Veneno em todo o mundo, que coalha.»

   Irmãs da Caridade! A Caridade
   Tem só duas irmãs--a Fé e a Esperança:
   Não traja as côres só d'uma irmandade,
   Traja as côres do Arco-da-alliança:
   Leva sósinha o pão da piedade,
   Tira da roda essa infeliz criança...
   Roda da vida, que anda de tal sorte
   Que, em se lhe dando, é já contar com a morte.

   Bemdita sejas tu, victima triste
   De um peito amante e d'um amante ingrato!
   Que nunca á mesma loba lançar viste
   Inda mamando o cachorrinho ao mato;
   Bemdita sejas tu, que o que pariste,
   Teu fructo, imagem tua e teu retrato
   Conservas como espelho onde te vejas;
   Bemdita sejas tu, bemdita sejas.

   Pára suspensa a pomba no seu vôo
   Ao vêr-te contemplando-o ajoelhada;
   E dizendo-te, a pomba: eu te abençôo
   Da parte do pai nosso, irmã amada!
   Abriste o seio ao dia e fecundou-o
   Aquella luz que o mundo fez de nada,
   E deu ao campo a flôr, á flôr semente
   Com que a mãi os filhinhos seus sustente.

   Bemdita sejas tu. Quando se esconde
   Debaixo da tua aza o que criaste,
   Abraça e beija os anjos Deus lá onde
   A jarra está da flôr de que és a haste;
   E um dia que não tenhas pão avonde
   Ou do céo te não chova agua que baste,
   Lança-lhe á luz do dia a mão direita,
   Mostra-lh'o; Deus os filhos não engeita.

   Pai não tinha o filhinho de Maria
   E ella o bercinho lhe arma de mil flôres,
   Deixando entrar em casa a luz do dia
   Que em perfume as derreta em seus amores;
   E inda abrindo os olhinhos mal lhe via,
   Já os pinceis preparam os pintores;
   Que o pai d'esse menino... Oh maravilha!
   Os que não teem pai Deus os perfilha.

   Deixa passar de largo a desposada...
   De cujo filho o pai quem é, Deus sabe!
   Deixa-a roçar-te os fatos enfadada
   Se comtigo na praça a par não cabe:
   Talvez um dia a casa levantada
   Sobre a areia solta ao chão desabe
   E em ruinas se encontre este letreiro:
   «Não era o pai dos teus mais verdadeiro.»

   Quem é que nasce aos pares como a rola,
   Ou como a pomba morre em viuvando,
   Que pela vêr sósinha em lodo atola
   Fresca vide que está do chão lançando?
   Acaso é só dourada altiva estola
   Que liga os corpos em as mãos ligando,
   Confunde os corações, e faz em summa
   Que a Deus se elevem duas almas n'uma?

   Amor é a palavra, o brado eterno
   Solto por Deus ao vêr já feito o mundo,
   Que fez tremer os carceres do inferno
   E o sol ficou da côr d'um moribundo:
   A primavera, estio, outono, inverno,
   Terra, céo, alma pura, bicho immundo,
   Tudo ahi cabe á larga de tal modo
   Que n'essa concha Deus se fecha todo.

   Amor enrola a nuvem na montanha
   E espalma a onda em praia que não sente,
   Ata ao raio de sol o fio d'aranha
   E humilha ao conductor o raio ardente.
   Quanto na rede immensa a vista apanha.
   Tudo que jaz e cresce e vive e sente,
   De Deus brotou n'um jorro de bondade
   E póde amar-se em espirito e verdade.

   Amo á aurora a luz doirada e clara,
   E ao crepusculo as nuvens da tristeza,
   A solida montanha, a nuvem rara
   Por invisivel fio aos astros presa;
   Amo a ancia feroz, a sêde avara
   Com que a loba parida engole a presa,
   E os crystallinos ais d'ave innocente
   Que comprimenta o sol ingenuamente!

   Amo o sopro que parte, esmaga, estala
   Esses corvos que aos bandos vem das ondas
   N'essas noites que o impio até se cala
   Receando, trovão! que lhe respondas...
   E amo o bafo subtil que a flôr embala
   Pedindo-te, botão, que dentro o escondas,
   E as primicias lhe dês que leve áquelle
   Que te fez a ti flôr e vento a elle.

   Tu só, que horror! a ti oh não te amo!
   Cheiras-me a sangue tu; teus olhos baços
   Olham, não vêem; tu tens bocca, chamo,
   Não me respondes; tens como eu dois braços,
   E não me abraças; brado afflicto, clamo,
   Tens duas pernas, e não dás dois passos:
   Ris, mas teu riso é d'enrilhados dentes;
   Mettes-me medo; tu, cadaver! mentes.

   Ninguem (prohibe-o Deus) o braço córte
   Que lhe roubou o espirito divino;
   Deus a Cain apaga sul e norte
   E condemna a viver o assassino:
   Mas tu, mentira! symbolo da morte...
   Hypocrisia! teu sorrir felino
   Te deixe arreganhada a bocca aberta,
   Gele-te a morte a mão que a minha aperta.

   ..........................................

Evora.

     *      *      *      *      *




   Se ao enlaçal-a no peito
   Me cahe desfeita uma flôr,
   Lembras-me, sonho desfeito!
         Sonho d'amor!

   Se a borboleta do calix
   D'um lirio aos ares se ergueu,
   Lembras-me, estrella dos valles!
         Lirio do céo!

   Se inda um affecto em mim vive
   Entre os que mortos possuo,
   Lembras-me, sonho que eu tive!
         Lembras-me tu!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




   Nunca me ha-de esquecer (ingrata! escuta)
   Não tendo eu mais talvez que os meus dez annos
   Esses olhos crueis, esses tyrannos
   Commigo em porfiada aberta lucta.

   Se eu fôra voraz lobo ou fera bruta
   D'entranhas más, instinctos deshumanos,
   Talvez o fructo então de teus enganos
   O não colhesses tu de face enxuta.

   Mas eu perdôo-te o mal que me has causado;
   A culpa não é tua e só devia
   Vingar-me em quem tão bella te ha formado.

   E hei-de vingar-me, crê; mas isso um dia
   Depois d'um beijo teu me pôr em estado
   De disputar a Jove a primazia.

Evora.

     *      *      *      *      *




DINHEIRO


   O dinheiro é tão bonito,
   Tão bonito, o maganão!
   Tem tanta graça o maldito,
   Tem tanto chiste o ladrão!
   O fallar, falla d'um modo...
   Todo elle, aquelle todo...
   E ellas acham-no tão guapo...
   Velhinha ou moça que veja,
   Por mais esquiva que seja,
            _Tlim!_
            Papo.

   E a cegueira da justiça
   Como elle a tira n'um ai!
   E sem pegar n'uma pinça;
   É só dizer-lhe: ahi vai...
   Operação melindrosa
   Que não é lá qualquer coisa;
   Catarata! tome conta:
   Pois não faz mais do que isto,
   Diz-me um juiz que o tem visto:
           _Tlim!_
           Prompta.

   N'essas especies de exames
   Que a gente faz em rapaz,
   São milagres aos enxames
   O que aquelle diabo faz.
   Sem saber nem patavina
   De grammatica latina,
   Quer-se a gente d'alli fóra?
   Vai elle com taes fallinhas,
   Taes gaifonas, taes coisinhas...
           _Tlim!_
           Ora...

   Aquella physionomia
   E labia que o diabo tem!

   Mas n'uma secretaria
   Ahi é que é vêl-o bem!
   Quando elle, de grande gala,
   Entra o ministro na sala,
   Aproveita a occasião:
   Conhece este amigo antigo?
   --Oh meu tão antigo amigo!
          (_Tlim!_)
          Pois não!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




DUVIDA


   Amas-me a mim! Perdôa;
   É impossivel! Não,
   Não ha quem se condôa
   Da minha solidão.

   Como podia eu, triste,
   Ah! inspirar-te amor,
   Um dia que me viste,
   Se é que me viste... flôr!

   Tu, bella, fresca e linda
   Como a aurora, ou mais
   Do que a aurora ainda,
   Mal ouves os meus ais!

   Mal ouves porque as aves
   Só soltam de manhã
   Seus canticos suaves;
   E tu és sua irmã!

   De noite apenas trina
   O triste rouxinol:
   Toda a mais ave inclina
   O collo ao pôr do sol.

   Porquê? porque é ditosa!
   Porquê? porque é feliz!
   E a que sorri a rosa?
   Ao mesmo a que sorris!

   Á luz doirada e pura
   Do astro creador.
   Á noite, não, que é escura,
   Causa-lhe a ella horror.

   Ora uma nuvem negra,
   Uma pesada cruz,
   Uma alma que se alegra
   Só quando vê a luz

   De que elle, o sol, inunda
   O mar, quando se põe!
   Imagem moribunda
   D'um coração... que foi!

   Uma alma semelhante
   Não póde captivar
   Um rosto tão galante,
   Um tão galante olhar!

   E eu vi os caracteres
   Que a tua mão traçou:
   Mas vós... ah! vós, mulheres,
   Quem já vos decifrou!

   Mal te sustinha o pulso
   A delicada mão!
   Sentia-te convulso
   Bater o coração!

   Via-te arfar o seio...
   Corar... mudar de côr...
   E embora, ah! não, não creio...
   Tu não me tens amor!

Portimão.

     *      *      *      *      *




CATURRAS


   Ah! compadre, a gente foge,
   Desabelha com calor;
   Aqui faz fresco na loge,
   É onde se está melhor;
   Mas que calor que fez hoje!

   --Pois, olhe, assim eu me désse
   De inverno quando faz frio,
   Como agora que elle aquece.
   Tome dois banhos no rio,
   Logo vê como arrefece.

   --Compadre, nunca me traga
   Taes coisas á collação;
   Lembra-me a maldita draga,
   Compadre do coração!
   Não me falle n'essa praga!

   --Tenho-lhe a mesma amizade
   Que o meu compadre lhe tem,
   Ás vezes dá-me vontade
   Até de a tragar tambem...
   Digo-lhe isto com verdade.

   --Ha-de isto chegar a pontos
   Que quem viver ha-de vêr!
   Já lá vão setenta contos,
   E a draga a apodrecer,
   E trabalhos nenhuns promptos.

   --Setenta, diz o compadre?
   Dão-lhe elles esse verniz...
   Lá como a sua comadre...
   Mas eu cá o que ella diz
   É como o que diz o padre...

   --Pois inda isso continúa?
   --Eu sei lá, compadre, eu sei!
   Ora canta, ora se amua...
   Eu é que já me lembrei
   De a pôr um dia na rua!

   --Compadre, tenha miolo,
   Isso não se faz assim;
   Eu não me tenho por tolo,
   E ponha os olhos em mim...
   Sirva-lhe isso de consolo.

   --Pois bem sei que é ninharia,
   Mas o compadre o que quer?
   Estimo a minha Maria,
   E isto de homem com mulher...
   Mas vamos á vacca fria:

   Com que a draga...--É empregada,
   Coisa que nunca se viu,
   Sendo uma peça aceada,
   A tirar lama do rio!
   Parece isto caçoada...

   --E caçoada indecente
   Porque outra coisa não é.
   Mais economicamente
   Quando vasasse a maré
   A tirava mesmo a gente.

   --E depois aquillo é lodo
   Que nunca póde prestar.
   Veja aterrar o caes todo
   Quando não ha-de importar...
   É gastar dinheiro a rodo.

   --Haja decima e derrama;
   Por causa do quê? do caes,
   Da draga ou como se chama,
   E outras coisinhas que taes
   Que tudo a final é lama.

   Pois sendo tudo bem feito
   Como á antiga, vá lá!
   Mas olhe, o caes não tem geito;
   De tudo quanto alli ha,
   A meu gosto, o parapeito.

   --Sim, senhor, obra segura,
   Obra como deve ser;
   Feio e forte; é o que dura:
   Foi sempre o que ouvi dizer
   A quem está na sepultura...

   --Mas era tudo escusado;
   N'esta, compadre, é que estou;
   E isto dá-me algum cuidado,
   Que o que meu pai me deixou
   Não foi nada mal ganhado.

   --Pois e, se quer que lhe conte,
   Já se ahi falla outra vez
   Em mandar fazer a ponte:
   Cuida esta gente talvez
   Que temos alguma fonte...

   --E havendo então uma barca...
   Como a Arca de Noé!
   Lá porque a gente se enxarca
   E não póde andar a pé
   Quando embarca e desembarca.

   --Escarranchem-se ao cachaço
   Dos marujos: pois então?
   Cá em taes obras nem passo
   Que pernas minhas darão;
   É gosto que lhes não faço.

   --Nada! havemos de ir agora
   Vêr ambos o que lá vai;
   Que a nós aquillo por ora
   Bem sei que nos não distrahe;
   Mas temos pouca demora.

   --Pois vamos, compadre, vamos.
   Sentamo-nos nos poiaes,
   Alli mesmo conversamos
   Ambos sósinhos no caes,
   E depois logo voltamos.

Portimão.

     *      *      *      *      *




       Cosi trapassa, al trapassar d'un giorno,
       Della vita mortale il fiore e 'l verde,
       Nè, perchè faccia indietro april ritorno
       Si rinfiora ella mai, nè si rinverde.

                                         TASSO.

   Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
   A luz que n'esta vida me guiava,
   Olhos fitos na qual até contava
   Ir os degraus do tumulo descendo.

   Em se ella anuveando, em a não vendo,
   Já se me a luz de tudo anuveava;
   Despontava ella apenas, despontava
   Logo em minha alma a luz que ia perdendo.

   Alma gemea da minha, e ingenua e pura
   Como os anjos do céo (se o não sonharam...)
   Quiz mostrar-me que, o bem, bem pouco dura.

   Não sei se me voou, se m'a levaram,
   Nem saiba eu nunca a minha desventura
   Contar aos que inda em vida não choraram.

   Ah! quando no seu collo reclinado,
   --Collo mais puro e candido que arminho,
   Como abelha na flôr do rosmaninho
   Osculava seu labio perfumado;

   Quando á luz dos seus olhos... (que era vêl-os,
   E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)
   Lia na sua bocca a Biblia Santa
   Escripta em letra côr dos seus cabellos;

   Quando a sua mãosinha pondo um dedo
   Em seus labios de rosa pouco aberta,
   Como timida pomba sempre álerta,
   Me impunha ora silencio ora segredo;

   Quando, como a alveloa, delicada
   E linda como a flôr que haja mais linda
   Passava como o cysne, ou como, ainda
   Antes do sol raiar, nuvem doirada;

   Quando em balsamo d'alma piedosa
   Ungia as mãos da supplice indigencia,
   Como a nuvem nas mãos da Providencia
   Uma lagrima estilla em flôr sequiosa;

   Quando a cruz do collar do seu pescoço
   Estendendo-me os braços, como estende
   O symbolo d'amor que as almas prende,
   Me dizia... o que ás mais dizer não oiço;

   Quando, se negra nuvem me espalhava
   Por sobre o coração algum desgosto,
   Conchegando-me ao seu candido rosto,
   No perfume d'um riso a dissipava;

   Quando o oiro da trança aos ventos dando
   E a neve de seu collo e seu vestido
   --Pomba que do seu par se ia perdido,
   Já de longe lhe ouvia o peito arfando;

   Tinha o céo da minha alma as sete côres,
   Valia-me este mundo um paraiso,
   Distillava-me a alma um dôce riso,
   Debaixo de meus pés nasciam flôres.

   Deus era inda meu pai. E em quanto pude
   Li o seu nome em tudo quanto existe
   --No campo em flôr, na praia arida e triste,
   No céo, no mar, na terra e... na virtude!

     Virtude! Que é mais que um nome
   Essa voz, que em ar se esvái,
   Se um riso que ao labio assome
   N'uma lagrima nos cái!

   Que és, virtude, se de luto
   Nos vestes o coração?
   És a blasphemia de Bruto
   --Não és mais que um nome vão.

   Abre a flôr á luz, que a enleva,
   Seu calix cheio d'amor,
   E o sol nasce, passa e leva
   Comsigo perfume e flôr!

     Que é d'esses cabellos d'oiro
   Do mais subido quilate,
   D'esses labios escarlate,
           Meu thesoiro!

   Que é d'esse halito, que ainda
   O coração me perfuma!
   Que é do teu collo de espuma,
           Pomba linda!

   Que é d'uma flôr da grinalda
   Dos teus doirados cabellos,
   D'esses olhos, quero vêl-os,
           Esmeralda!

   Que é d'essa alma que me déste!
   D'um sorriso, um só que fosse,
   Da tua bocca tão dôce,
           Flôr celeste!

   Tua cabeça que é d'ella
   A tua cabeça d'oiro,
   Minha pomba! meu thesoiro!
           Minha estrella!

     De dia a estrella d'alva empallidece;
   E a luz do dia eterno te ha ferido.
   Em teu languido olhar adormecido
   Nunca me um dia em vida amanhecesse.

   Foste a concha da praia. A flôr parece
   Mais ditosa que tu. Quem te ha partido,
   Meu calix de crystal, onde hei bebido
   Os nectares do céo... se um céo houvesse!

   Fonte pura das lagrimas que choro!
   Quem tão menina e moça desmanchado
   Te ha pelas nuvens os cabellos d'oiro!

   Some-te, vela de baixel quebrado!
   Some-te, vôa, apaga-te, meteoro!
   É n'este mundo mais um desgraçado.

     E as desgraças, podia prevel-as
   Quem a terra sustenta no ar,
   Quem sustenta no ar as estrellas,
   Quem levanta ás estrellas o mar.

   Deus podia prevêr a desgraça,
   Deus podia prevêr e não quiz;
   E não quiz, não... se a nuvem que passa
   Tambem póde chamar-se infeliz!

   A vida é o dia d'hoje,
   A vida é ai que mal sôa,
   A vida é sombra que foge,
   A vida é nuvem que vôa;
   A vida é sonho tão leve
   Que se desfaz como a neve

   E como o fumo se esvái:
   A vida dura um momento,
   Mais leve que o pensamento,
   A vida leva-a o vento,
   A vida é folha que cái!

   A vida é flôr na corrente,
   A vida é sôpro suave,
   A vida é estrella cadente,
   Vôa mais leve que a ave;
   Nuvem que o vento nos ares,
   Onda que o vento nos mares,
   Uma após outra lançou,
   A vida--penna cahida
   Da aza d'ave ferida--
   De valle em valle impellida,
   A vida o vento a levou!

   Como em sonhos o anjo que me afaga
   Leva na trança os lirios que lhe puz,
       E a luz quando se apaga
       Leva aos olhos a luz;

   Como os ávidos olhos d'um amante
   Levam comsigo a luz d'um dôce olhar,
       E o vento do levante
       Leva a onda do mar;

   Como o tenro filhinho quando expira
   Leva o beijo dos labios maternaes,
         E á alma que suspira
         O vento leva os ais;

   Ou como leva ao collo a mãi seu filho,
   E as azas leva a pomba que voou,
         E o sol leva o seu brilho,
         O vento m'a levou.

   E tu és piedoso,
   Senhor! és Deus e pai!
   E ao filho desditoso
   Não ouves um só ai!
   Estrellas déste aos ares,
   Dás perolas aos mares,
   Ao campo dás a flôr,
   Frescura dás ás fontes,
   O lirio dás aos montes
   E tiras-m'a, Senhor!

   Ah! quando n'uma vista o mundo abranjo,
   Estendo os braços e, palpando o mundo,
   O céo, a terra e o mar vejo a meus pés;
   Buscando em vão a imagem do meu anjo,
   Soletro á froixa luz d'um moribundo
         Em tudo só--talvez...

   Talvez é hoje a Biblia, o livro aberto
   Que eu só ponho ante mim nas rochas, quando
   Vou pelo mundo vêr se a posso vêr;
   E onde, como a palmeira do deserto,
   Apenas vejo aos pés, inquieta, ondeando
         A sombra do meu sêr.

   Meu sêr, voou na aza da aguia negra
   Que, levando-a, só não levou comsigo
         D'esta alma aquelle amor!
   E quando a luz do sol o mundo alegra,
   Chrysalida nocturna, a sós commigo,
         Abraço a minha dôr!

   Dôr inutil! Se a flôr, que ao céo envia
   Seus balsamos, se esfolha, e tu no espaço
   Achas depois seus atomos subtis;
   Inda has-de ouvir a voz que ouviste um dia,
   Como a sua Leonor inda ouve o Tasso!...
         Dante... a sua Beatriz!

   --Nunca; responde a folha que o outono,
   Da haste que a sustinha a mão abrindo,
         Ao vento confiou:
   --Nunca; responde a campa onde, do somno,
   E quem talvez sonhava um sonho lindo,
         Um dia despertou.

   --Nunca; responde o ai que o labio vibra;
   --Nunca; responde a rosa que na face
         Um dia emmurcheceu:
   E a onda, que um momento se equilibra
   Em quanto diz ás mais: deixai que eu passe!
         E passou e... morreu!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




MÃI E FILHO


   Primicias do meu amor!
   Meu filhinho! do meu seio
   Tenro fructo que á luz veio
   Como á luz da aurora a flôr!

   Na tua face, innocente,
   De teu pai a face beijo,
   E em teus olhos, filho, vejo
   Como Deus é providente.

   Via em lamina doirada
   O meu rosto todo o dia
   E a minha alma não se havia
   De vêr nunca retratada?

   Quando o pai me unia á face,
   E em seus braços me apertava,
   Pomba, ou anjo nos faltava
   Que ambos juntos abraçasse!

   Felizmente, Deus que o centro
   Vê da terra e vê do abysmo,
   Que bem sabe no que eu scismo,
   Na minha alma um altar viu dentro:

   Mas com lampada sem brilho,
   Sem o deus a que era feito...
   Bafeja-me um dia o peito,
   E eis feito o meu gosto, filho!

   Como em lagrimas se espalma
   Dôr intima e se esvaece
   D'alma o resto quem podesse
   Vasar n'um beijo em tua alma!

   Mas em ti minha alma habita!
   Mas teu riso a vida furta...
   Mas (que importa!) morte curta!
   Se um teu beijo resuscita!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




   Toca a capello, vou vêl-o
   E vejo de toda a côr,
   Não doutores de capello,
   Mas capellos de doutor.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




   Amas, pobre animal! e tens tu pena?...
   Sim, póde na tua alma entrar piedade?
   Se póde entrar, eu sei! Negar quem ha-de
   Amor ao tigre, coração á hyena!
       Tudo no mundo sente: o odio é premio
   Dos condemnados só, que esconde o inferno.
   Tudo no mundo sente: a mão do Eterno
   A tudo deu irmão, deu par, deu gemeo.
       A mim deu-me esta gata, a mim deu-me isto...
   Esta fera, que as unhas encolhendo
   Pelos hombros me trepa e vem, correndo,
   Beijar-me... Só não vivo! amado existo!

Evora.

     *      *      *      *      *




NÃO!


   Tenho-te muito amor,
   E amas-me muito, creio;
   Mas, ouve-me, receio
   Tornar-te desgraçada.
   O homem, minha amada!
   Não perde nada, goza;
   Mas a mulher é rosa...
   Sim, a mulher é flôr!

   Ora e, a flôr, vê tu
   No que ella se resume...
   Faltando-lhe o perfume,
   Que é a essencia d'ella,
   A mais viçosa e bella
   Vê-a a gente e... basta.
   Sê sempre, sempre, casta!
   Terás... quanto possuo!

   Terás, em quanto a mim
   Me alumiar teu rosto,
   Uma alma toda gosto,
   Enlevo, riso, encanto!
   Depois, terás meu pranto
   Nas praias solitarias...
   Ondas tumultuarias
   De lagrimas sem fim!

   Á noite, que o pezar
   Me arrebatar de casa,
   Irei na campa rasa
   Que resguardar teus ossos,
   Ah! recordando os nossos
   Tão venturosos dias,
   Fazer-te as cinzas frias
   Ainda palpitar!

   Mil beijos, dôce bem!
   Darei no pó sagrado,
   Em que se houver tornado
   Um corpo tão galante!
   Com pena, minha amante,
   De me não ter a morte
   Cahido a mim em sorte...
   Cahido a mim tambem!

   Já exhalando os ais
   Na lugubre morada
   Te vejo a sombra amada
   Sahir da sepultura...
   A tua imagem pura,
   Fiel, mas illusoria...
   Gravada na memoria
   Em traços tão leaes!

   Então, se ainda alli
   Teus vaporosos braços,
   Poderem dar abraços
   Como dão hoje em dia,
   Peço-te, sombra fria!
   No mais intimo d'elles
   Que a mim tambem me geles,
   E fique ao pé de ti!

   Mas, ai! meu coração!
   Tu porque assim te affliges,
   E tremula diriges
   A vista ao céo piedoso!...
   O quadro é horroroso,
   A scena triste e feia,
   Basta encerrar a idéa
   D'uma separação...

   Mas, ouve, existe Deus.
   Ora e, se Deus existe,
   Tão horroroso e triste
   Que pódes temer? Nada!
   Desfruta descançada
   O extasi, o enleio
   Em que eu já saboreio
   O jubilo dos céos!

   Deixa-me n'esse olhar
   Vêr como a lua assoma...
   Sim, deixa no aroma,
   Que a tua bocca exhala,
   Vêr como a rosa falla
   Quando a aurora a inspira...
   Vêr como a flôr suspira
   Por vêr o sol raiar!

   A morte para amor
   É exito sublime.
   A morte para o crime,
   É que é amarga e feia.
   A morte não receia
   O verdadeiro amante;
   Por ella a cada instante
   Implora elle o Senhor.

   É juntos, tu verás,
   Que nós expiraremos!
   Sim, juntos, que os extremos
   Olhares cambiando,
   Iremos despegando,
   Do involucro terreno,
   O espirito sereno
   Como a eterna paz!

   Vê, só porque suppuz
   Chegado esse momento,
   Já esse olhar mais lento...
   As vistas mais serenas...
   Bruxuleando apenas,
   Em languido desejo,
   Symphatico lampejo
   D'uma ineffavel luz!

   Ha, n'este triste valle
   De lagrimas, a imagem
   De dois n'essa passagem
   Para a eternidade...
   A nevoa, a anciedade,
   O jubilo que mata,
   Dão uma idéa exacta
   Do transito fatal.

   Mas essa imagem, flôr!
   É tão fiel, tão viva
   Que á sua luz activa
   Se cresta a flôr mimosa!
   E nem o homem goza:
   Se goza é um momento!
   Depois... o desalento!
   Depois... o desamor!

Portimão.

     *      *      *      *      *




NA FOLHA D'UM ROMANCE


   Moldada ao bem nasci, mas debil planta
   Verguei de vicio ao sopro pestilente;
   D'entre o vicio porém minha alma ardente
   Castos hymnos a Deus saudosa canta.

   Ah! se um mentido affecto amor levanta
   N'um pobre coração inexperiente,
   D'elles a culpa é toda! uma innocente
   Não consulta a razão, razões supplanta.

   Cahi, verguei, Senhor! já pervertida
   Graças, beijos vendi, vendi belleza,
   Triste commercio de mulher perdida.

   Oh! mas, Deus do amor! foi só fraqueza:
   De impias mãos me arrancai, tirai-me a vida,
   Alcance-me o perdão mortal tristeza!

Messines.

     *      *      *      *      *




   Lagrima celeste,
   Perola do mar,
   O que me fizeste
   Para me encantar!

   Ah! se tu não fosses
   Lagrima do céo,
   Lagrimas tão dôces
   Não chorára eu.

   Se nunca te visse
   Bonina do val,
   Talvez não sentisse
   Nunca amor igual.

   Pomba desmandada,
   Que é dos filhos teus,
   Luz da madrugada,
   Luz dos olhos meus!

   Meu suspiro eterno,
   Meu eterno amor,
   D'um olhar mais terno
   Que o abrir da flôr,

   Quando o nectar chora,
   Que se lhe introduz,
   Ao romper da aurora,
   Ao raiar da luz,

   Por entre a folhagem
   Onde mal se vê,
   Como a terna imagem
   Da que eu adorei.

   Que esta voz te enleve,
   Que este adeus lá sôe,
   Que o Senhor t'o leve,
   Que Deus te abençôe.

   Que o Senhor te diga
   Se te adoro ou não,
   Minha dôce amiga
   Do meu coração!

   Se de ti me esqueço,
   Se já me esqueci,
   Ou se mais lhe peço,
   Do que vêr-te a ti;

   A ti que amo tanto
   Como a flôr a luz,
   Como a ave o canto,
   E o Cordeiro a cruz,

   E a campa o cypreste,
   E a rola o seu par,
   Lagrima celeste!
   Perola do mar!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




DESCALÇA!


   Quem és, que ao vêr-te o coração suspira,
           E em puro amor desfaz-se!
   Raio crepuscular do sol que nasce,
           De lampada que expira!

   Como os teus pés são lindos! como é dôce
           A curva do teu peito!
   Oh! se o meu coração fosse o teu leito,
           E o teu amado eu fosse!

   Que preciosas perolas descobre
           Teu meigo humido labio!
   E, virgem! como Deus foi justo e sabio
           Em te fazer tão pobre!

   Não tens fofo velludo onde se atole
           Tua angelica imagem;
   Mas quando é bello o céo, bella a paizagem
           E quando é bello o sol?

   Limpo de nuvens, nú, derrete a neve
           E a aguia até desmaia.
   Tu não tens mais do que uma pobre saia,
           E essa, curtinha e leve.

   Onde o corpo te alteia, a saia avulta;
           Onde te abaixa, desce...
   És como a rosa! A rosa nasce e cresce,
           Não para estar occulta.

   O que te falta pois? os teus desejos
           Quaes são? de que precisas?
   Ah! não ser eu o marmore que pisas...
           Calçava-te de beijos!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




ADEUS!


   Adeus tranças côr de oiro,
   Adeus peito côr de neve!
   Adeus cofre onde estar deve
   Escondido o meu thesoiro!

   Adeus bonina, adeus lirio
   Do meu exilio d'abrolhos!
   Adeus oh luz dos meus olhos
   E meu tão dôce martyrio!

   Desfeito sonho doirado,
   Nuvem desfeita de incenso,
   Em quem dormindo só penso,
   Em quem só penso acordado!

   Visão sim mas visão linda!
   Sonho meu desvanecido!
   Meu paraiso perdido
   Que de longe adoro ainda!

   Nuvem, que ao sopro da aragem
   Voou nas azas de prata,
   Mas no lago que a retrata
   Deixou esculpida a imagem!

   Rosa d'amor desfolhada
   Que n'alma deixou o aroma,
   Como o deixa na redoma
   Fina essencia evaporada!

   Adeus sol que me alumia
   Pelas ondas do oceano
   D'esta vida, d'este engano,
   D'este sonho d'um só dia!

   No mesmo arbusto onde o ninho
   Teceu a ave innocente
   Se volta a quadra inclemente
   Acha abrigo o passarinho:

   Mas eu n'esta soledade
   Quando em meus sonhos te estreito,
   Rosto a rosto, peito a peito,
   Acordo e acho a saudade!

   Adeus pois morte! adeus vida!
   Adeus infortunio e sorte!
   Adeus estrella do norte!
   Adeus bussola perdida!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




A VICTORIA COLONNA


   Não sei que ha de divino, força é crêl-o
   N'esses teus olhos d'uma luz tão pura
   Que, ao vêl-os, tive logo por segura
   Aquella paz que é meu constante anhelo.

   Filha de Deus, nossa alma aspira a vêl-o;
   Desprezando caduca formosura,
   Ella, em seu giro eterno, só procura
   A fórma, o typo universal do bello.

   Não póde amar, não deve, uma alma casta
   Fugaz belleza, graça transitoria,
   Coisa que o tempo leva, o tempo gasta.

   Nem tambem alma digna de memoria
   Póde amar o prazer, que o bruto arrasta,
   Em vez do puro amor--sombra da gloria.

                              MIGUEL-ANGELO.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




N'UM CONVENTO


   Como a agua em funda gruta
   Gotta a gotta filtra e cái,
   Sem saber quem isso escuta
   O que lá por dentro vai:

   Como ao longe incerta e baça
   N'uma igreja alveja a luz,
   Que da lampada esvoaça
   E a vidraça reproduz:

   Mal te vi, moira encantada!
   Mas á luz dos olhos teus
   Murcha a lampada sagrada
   D'um altar do nosso Deus.

   Mal te ouvi, mas as suaves
   Melodias, que te ouvi,
   São mais dôces que as das aves
   Da aldêa onde nasci!

   Quem teve, bella captiva,
   Coração de te deixar
   Aqui enterrada viva,
   Sem amor, sem luz, sem ar!

   Era cego e surdo, juro,
   O miseravel algoz
   Que não viu olhar tão puro,
   Não ouviu tão pura voz!

   Eu não tendo a faculdade
   D'arrazar esta prisão,
   Sacrifico a liberdade
   Por tão dôce escravidão!...

Coimbra.

     *      *      *      *      *




SONHO


   Ha muitos sonhos de imaginação,
       De mera phantasia:
   Outros, que são a voz da prophecia,
       A voz da intuição,
       A voz do coração.

   Pões fé em sonhos taes, Maria?... Pões?
       E fazes bem, que ás vezes
   Sonha a gente venturas e revezes,
       Que se tornam depois
       Bem certos! Ouve pois:

   Sonhei que era n'um valle. Anoiteceu.
       Então duas estrellas.
   (Tão lucidas, tão limpidas, tão bellas!)
       Vieram lá do céo
       Alumiar-me. E eu...

   Não sabia e pergunto: o que buscaes,
       Alampadas celestes!
   Vós, cá por este mundo... o que perdestes?
       Na terra não achaes
       Senão prantos e ais!

   Respondem-me as estrellas (como a quem
       As tivesse captivas,
   Tão tremulas! as bellas fugitivas)
       --Buscavamos alguem
       Que nos quizesse bem:

   É sorte nossa, é nossa condição
       Dar luz, ser norte e guia;
   Mas de mais boamente se alumia
       Na terra um coração
       Que nos tem affeição.--

   --Pois e se vós do céo, lá onde até
       Se ignora o que são dôres,
   Vindes á terra procurar amores,
         Estrellas! se assim é,
         Tendes-me aqui ao pé:

   Que em summa a noite da minha alma é tal
         Que eu pobre viajante
   Ando... se para traz, se para diante,
         N'este profundo val,
         Não sei nem bem mal.

   Guiai-me pois, estrellas do Senhor!
         E a jura que vos faço
   É que na terra não darei um passo
         Senão só por amor
         Do vosso resplendor!--

   Ellas então sorrindo-se, que eu vi,
         Tão meigas e suaves!
   Voaram como duas lindas aves;
         Indo poisar ahi...
         N'esse teu rosto... em ti!

Lisboa.

     *      *      *      *      *




Á VISTA D'UM RETRATO


   Amo-te, flôr! Se te amo, Deus que o sabe
   Que o diga a teus irmãos, que o céo povoam,
   E ebrios de gloria canticos entoam
   A quem no mar, na terra e céos não cabe.

   Se te amo, flôr! que o diga o mar--que expelle
   Quanto é dominio, beija humilde a praia:
   Se mal que a lua lá das ondas sáia
   Nas rochas me não vê gemer com elle.

   Amo-te, flôr! se te amo, o sol que o diga!
   Quanto lá da montanha aos céos se eleva,
   Se entre os vermes do pó que o vento leva,
   Me banha a mim tambem na luz amiga.

   Se te amo, flôr? Sem ti, que noite escura,
   Meu céo, meu campo em flôr, meu dia e tudo!
   Diga-te a noite minha se te illudo,
   Se em vida já sem ti, sonhei ventura!

   O anjo que a berço humilde e escasso
   Do céo me veio alumiar piedoso,
   E em lagrimas e riso, pranto e gozo,
   Desde então me acompanha passo a passo;

   És tu! Amo-te e muito! O que fluctua
   Na fornalha que o sopro eterno accende,
   Não beija a mão do anjo que o suspende
   Com mais amor que eu beijo a sombra tua!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




A LUA


   Esse olhar silencioso
   Em que lingua se traduz?
   Falla-me, oh astro saudoso,
   Luz do céo, pallida luz!
     Que aereas visões me acordas,
   Que imagem, lua, recordas
   N'essa prateada côr?
   Que ha em ti, que a dôr mitiga,
   Que ha em ti, lampada amiga,
   De meigo e consolador?

   Escuta, pallida lua,
   Dá-me um sorriso dos teus,
   Dá-me uma lagrima tua,
   Se és a pupilla de Deus!
     Vê que outros mimos não tenho,
   Que em tua face desenho
   A face do meu amor:
   Uma só lagrima! fria,
   Que ella me cáia... diria
   Que uma lagrima cahia
   Do céo ao menos na dôr!

Coimbra.

     *      *      *      *      *




JOVEN CAPTIVA


   Respeita a foice a espiga verde ainda;
   Sem medo da vindima, o estio inteiro,
   Bebe o pampano as lagrimas da aurora:
   E eu verde como a espiga, tenra e linda
   Como o pampano, hei-de morrer? não quero:
           Quero, mas não por ora!

   Talvez que a outrem, morte, grata fosses.
   Espero! Embora em lagrimas me lave,
   Varre-me o norte a mim a face? inclino-a.
   Se ha dias tristes, ai! ha-os tão dôces...
   Sem amargo, que mel, por mais suave
           Que mar, em paz continua?

   Benefica illusão meu seio habita.
   Sepulte-me este carcere inhumano;
   A aza nivea da fé não se agrilhôa.
   Escapa ao laço da prisão maldita,
   Mais viva e alegre, a esse aereo oceano,
           A alvéloa canta e vôa.

   Hei-de morrer? porque? se não diviso
   Em minha alma um remorso; durma ou vele,
   Se eu velo e durmo em paz, na paz do justo!
   Se em cada rosto a luz me abre um sorriso;
   Aqui mesmo, onde a mágoa o riso expelle;
           E a luz assoma a custo!

   O fim do meu destino é lá tão longe!
   Quantos passei dos alemos que adornam
   Esta bella viagem? Assentada
   Ao banquete da vida apenas hoje,
   A taça ainda cheia as mãos entornam,
           Dos labios illibada.

   Estou na primavera, oh segadores!
   E as mais quadras do anno havia agora
   De não acompanhar o sol? havia?
   Debruçada em meu pé, gloria das flôres,
   Eu não vi mais do que raiar a aurora;
           Quero acabar meu dia.

   Espera um pouco, oh morte! nada perdes.
   Antes consola os que o remorso, o medo,
   O desalento pallido devora!
   Guarda-me ainda o campo grutas verdes!
   As musas, cantos! e o amor... Segredo!
           Não morro, não, por ora!

   Assim, encarcerada, o rosto lindo
   E a vista alçando a regiões ignotas,
   Minha musa entoou na fé mais viva:
   E eu, as languidas mágoas sacudindo,
   Moldei em dôce verso as dôces notas
           D'essa joven captiva!

                            ANDRÉ-CHÉNIER.

Coimbra.

     *      *      *      *      *




   Mulher! quando nos braços
   Te escuto uma canção,
   Não vês em meus abraços
   Profunda commoção?
     É que o teu canto á mente
   Me traz vida melhor...
               Ah!
   Cantai continuamente,
   Cantai, oh meu amor!

   Quando sorris, assume
   Teu rosto uma expressão,
   Que o mais feroz ciume
   Se desvanece então.
     Sorriso tal desmente
   Um coração traidor...
               Ah!
   Sorri continuamente,
   Sorri, oh meu amor!

   Quando tranquilla e pura,
   Te estou a vêr dormir,
   Que vozes se afigura
   Teu halito exprimir?
     Contemplo então contente
   Teu corpo encantador...
               Ah!
   Dormi continuamente,
   Dormi, oh meu amor!

   _Letra de_ V. HUGO. _Musica de_ GOUNOD.

Lisboa.

     *      *      *      *      *




UM BEIJO


   Seria o beijo
   Que te pedi,
   Dize, a razão
   (Outra não vejo)
   Porque perdi
   Tanta affeição?

   Fiz mal, confesso;
   Mas esse excesso,
   Se o commetti,
   Foi por paixão,
   Sim, por amor
   De quem?... de ti!
   Tu pensas, flôr,
   Que a mulher basta
   Que seja casta,
   Unicamente?
   Não basta tal.
   Cumpre ser boa,
   Ser indulgente.
   Fiz-te algum mal?
   Pois bem: perdôa!

   É tão suave
   Ao coração
   Mesmo o perdão
   D'offensa grave!
   Se o alcançasse,
   Se o conseguisse,
   Quizera então
   Beijar-te a mão,
   Beijar-te a face...
   Beijar? que disse!
   (Que indiscrição...)
   Perdão! perdão!

Lisboa.



FRANCISCA DE RIMINI


   Disse eu então: poeta, vês aquelles,
   Abraçados, velozes como o vento?
   Desejava poder fallar com elles.

   --Chamando-os com enternecimento,
   Em cá passando mais do nosso lado,
   São dois amantes, lograrás o intento.

   Assim que o vento os aproxima, brado:
   Oh almas d'uma eterna anciedade,
   Vinde fallar-me, se vos isso é dado.

   Como um casal de pombas, com saudade
   Do ninho, vem no ar, d'aza espalmada,
   Não mais que por impulso da vontade;

   Rompendo aquella aragem empéstada,
   Acodem lá do bando onde anda Dido
   Á supplica tocante e magoada.

   «Ah mortal generoso e condoído,
   Que nos visita n'este escuro horrendo,
   Deixando nós de sangue o chão tingido!

   «Do Senhor impetráramos podendo,
   Já que tens dó do nosso mal enorme,
   O teu descanço eterno em fallecendo.

   «Queiras ouvir-nos ou fallar, conforme,
   É só dizer ou perguntar, mais nada;
   Em quanto o vento, como agora, dorme.

   «A terra, onde nasci, fica assentada
   Na praia onde a final o Pó descança,
   E os que o seguem na marcha arrebatada.

   «Amor, que em nenhum moço acha esquivança
   Prendeu este a um corpo... que roubado
   Foi á minha alma em barbara vingança!

   «Amor, que obriga amar quem é amado,
   Poz-me com elle tão condescendente,
   Que ainda, como vês, me anda abraçado.

   «Amor nos deu a morte juntamente.
   Quem nos matou irá para as Caínas.»
   Disseram elles isto fielmente.

   Depois d'ouvir as victimas mofinas,
   Scismando cabisbaixo, em tal postura,
   Pergunta-me o poeta: em que imaginas?

   Começo respondendo: oh desventura!
   Quanta esperança! quanta sympathia
   A ambos não cavou a sepultura!

   E voltando-me a quem me referia:
   Olha Francisca! dó dos teus tormentos
   Estas lagrimas tristes desafia.

   Mas na quadra dos vagos sentimentos,
   Conta-me: como foi que conheceste
   Os amorosos languidos momentos!

   «O desgosto maior d'um triste é este,
   Fallar do tempo que passou, confesso:
   Que o diga o proprio guia que trouxeste

   «Mas desejando tu com tanto excesso
   Conhecer de raiz esta amizade,
   Entre vozes e lagrimas começo:

   «Liamos ambos, por curiosidade,
   Certa historia d'amores, que idearam,
   Nós sós, um dia, livres de maldade.

   «Muita vez nossos olhos se espantaram,
   E descoramos, lendo a historia estranha;
   Mas dos lances que mais nos abalaram,

   «Foi quando em summa o terno amante apanha
   O dôce beijo, por que andava ardendo:
   Este, que eternamente me acompanha,

   «Beija-me a bocca a mim, todo tremendo!
   A culpa foi do livro que se lia!
   Não se continuou o dia lendo.»

   Em quanto assim Francisca respondia,
   Chorava Paulo, a ponto, d'aterrado
   Me vêr nas convulsões da agonia,
   E cahir, como um corpo inanimado!

                                       DANTE.

Lisboa.

     *      *      *      *      *




PAIXÃO


   Suppõe que d'uma praia, rocha ou monte,
   Com essa vista embaciada e turva
   Que dá aos olhos entranhavel dôr;
   Tinhas podido vêr transpôr a curva,
   Pouco a pouco, do liquido horisonte,
   A saudosa barca, que levasse
   Aquelle, a quem primeiro uniste a face
       E o teu primeiro amor!

   Depois, que toda mágoa e saudade,
   Da mesma rocha ou alcantil deserto,
   Olhando ávidamente para o mar;
   Vias na solitaria immensidade,
   Vagas ficções d'um pensamento incerto,
   Surgir das ondas, desfazer-se em espuma;
   Não alvejando, nunca, vela alguma
       E, sempre, a suspirar.

   Até que á luz d'uma intuição sublime
   D'alma arrancavas o gemido extremo
   De saudade, desespero e dôr!...
   Pois é assim que eu soffro, assim que eu gemo!
   Que nuvem negra o coração me opprime;
   Nuvem de mágoa, nuvem de ciume,
   Em te não vendo á hora do costume,
       Meu anjo e meu amor!

Lisboa.

     *      *      *      *      *




ESCREVE!


     Não sei o que suppôr
   Do teu silencio. Escreve!
   Quem é amado deve
   Ser grato ao menos, flôr!
     Se eu fosse tão feliz
   Que te fallasse um dia
   De viva voz, diria
   Mais do que a carta diz.
     Mas, olha, tal qual é
   Não rias d'esse escripto
   Que, pouco ou muito, é dito
   Tudo de boa fé.
     Ha n'esse teu olhar
   A dôce luz da lua,
   Mas luz que se insinua
   A ponto de abrazar...
     Pareça n'elle sim
   Que ha só doçura, embora:
   Ha fogo que devora...
   Que me devora a mim!
     Que mata, mas que dá
   Uma suave morte;
   Mata da mesma sorte
   Que uma arvore que ha:
     Que ao pé se lhe ficou
   Acaso alguem dormindo
   Adormeceu sorrindo...
   Porém não acordou.
     Esse teu seio então,
   Que encantadora curva!
   Como de o vêr se turva
   A vista e a razão!
     Como até mesmo o ar
   Suspende a gente logo...
   Pregando olhos de fogo
   Em tão formoso par!
     Oh seio encantador,
   Delicioso seio!
   Que jubilo, que enleio
   Libar-lhe o nectar, flôr!
     Eu tenho muita vez
   Já visto a borboleta
   Na casta violeta
   Poisar os leves pés:
     E n'um enlevo tal,
   N'uma avidez tamanha,
   Que a gente a não apanha
   Com dó de fazer mal!
     Pegada á flôr então
   No pé curvinho e molle,
   As azas nem as bole
   Toda sofreguidão!
     Poisou... adormeceu!
   Só vê, só ouve e sente
   O calix rescendente
   D'aquelle mel do céo!
     Pois vê com que prazer
   E com que ardente sêde
   Te havia... (que não hei-de!...)
   Tambem beijar, sorver!
     Mas eu só peço dó,
   Só peço piedade!
   Mata-me a saudade
   Com duas linhas só!
     Eu, a não ser em ti
   Achar allivios, onde?
   Escreve-me! responde
   Á carta que escrevi!
     Cançado de esperar
   Ás vezes quando sáio,
   Pensas que me distraio?
   Pois volto com pezar!
     Concentra-se-me em ti
   A alma de tal modo
   Que esse bulicio todo
   Nem o ouvi, nem vi!
     Ninguem te substitue,
   Porque só tu és bella!
   Que estrella a minha estrella,
   E que infeliz que eu fui!
     Mas devo-te suppôr
   Sempre indulgente e boa,
   Escreve-me e perdôa
   Meu violento amor!
     Respeita uma affeição
   Inutil mas sincera.
   Tu és mulher, pondera
   O que é uma paixão.
     Com sangue era eu capaz
   De te escrever; portanto,
   Tinta não custa tanto!
   E não me escreverás?
     Uma palavra, sim,
   Que me não amas... Queres?
   Em quanto me escreveres,
   Tu pensarás em mim!
     Só essa idéa, crê,
   Encerra mais doçura
   Que as provas de ternura
   Que outra qualquer me dê!

Lisboa.

     *      *      *      *      *




MALMEQUER


   Talvez em eu morrendo a teus ouvidos
   Chegue a noticia, que hoje os factos vôam,
   E oiças então os intimos gemidos
           Que exhalo e te não sôam.

   Talvez então, embora me não ames,
   Com esses olhos humidos de fito
   Na minha sombra: «Desgraçado! exclames;
            Amava-me, acredito.

   «Levou a vida amando-me: que prova
   Me podia alguem dar de mais ternura,
   Ingrata como eu era! Abri-lhe a cova,
           Cavei-lhe a sepultura!

   «Hei-de regal-a de meu pranto. Julgo
   Do meu dever... agradecer-lhe agora!
   Purificar-me em lagrimas! O vulgo
             Que me censure embora.

   «Hei-de ir dispôr um pé de saudade
   Na terra onde elle descançou da lida;
   Mostrar-lhe amor, mostrar-lhe piedade,
             Que não mostrei em vida!»

   Se fôres, meu amor! uma perpetua,
   E uma saudade ser-me-hia dôce!
   Mas só perpetua ou saudade, aceito-a,
             E um malmequer que fosse.

Lisboa.

     *      *      *      *      *




VIRGINIA

Para se recitar no theatro do Príncipe-Real


   Senhores! vêde o sol; diariamente
   Nasce, cruza esse espaço e, no poente,
           Acaba de brilhar.
   É util, é preciso, é necessario,
   Não é pois inconstante, não é vario;
           É certo, é regular!

   Hervas que nutrem, animaes que comem,
   E a imagem de Deus--que falla--o homem,
           Sem essa luz, dizei:
   Vegetavam acaso, existiriam?
   Os echos d'esses valles repetiam
           Alguma voz? O que!...

   Seria tudo um ermo escuro e mudo;
   Tudo insensivel, solitario tudo!
           Mas Deus cria essa luz;
   E um mar sem praias de silencio e morte,
   Sêres de toda a casta--toda a sorte,
           Produz e reproduz!

   Sim, essa luz benefica converte,
   Por mysteriosa alchimia, frio, inerte,
           Imperceptivel grão
   Em tenras hastes, em botões mimosos,
   Folhas, flôres e fructos saborosos
           Que recamam o chão!

   Mas julgaes vós agricola sómente
   A mão do creador omnisciente?
           Pergunta singular!
   Basta só vêr a ondeada trança
   Com que elle adorna a virgem que vos lança
           O seu primeiro olhar!

   A terra é de côr varia, a planta, verde:
   Porque e para que? O que se perde
           Em ter tudo uma côr?
   O que se ganha em ser tão bem pintada,
   Symetrica, mimosa, perfumada
           Uma ephemera flôr?

   É que Deus é artista! e noite e dia
   E céo e terra e mar o denuncia...
           Vêde nascer o sol!
   Pôr-se alta noite a lua encantadora...
   Em quanto ao mesmo tempo canta e chora
           Ao longe o rouxinol!

   Deus é artista, sim; Deus ama o bello,
   Mais talvez do que o util. O desvelo
           Com que elle trata a flôr!
   Antes de abrir... que mãi tão carinhosa
   Resguarda, mais solicita que a rosa,
           Um seu botão d'amor!

   Nem podia sahir obra incompleta
   Das mãos de Deus: geometra e poeta
           Em summo grau, traçou
   A compasso a abobada celeste;
   Mas de que lindas nuvens a reveste
           Que ao vento tomam vôo!

   Creou, de fogo, o sol--o grande astro!
   E creou, não de fogo, d'alabastro
           A sua bella irmã
   --Sombra apenas do sol, desnecessaria,
   Luz phantastica, vaga, solitaria,
           Inutil, fátua, vã...

   Mas luz intima! luz do sentimento!
   Luz d'amor e de fé! que inspira alento
           A nossos corações!
   Unica luz, á qual se mede o fundo
   D'esse concavo mar... d'esse outro mundo...
           D'esse mundo de soes!

   Porque se ao sol deveis fructos e flôres,
   Á lua deveis mais, deveis amores...
           Deveis... como direi?
   Esta entranhavel, vaga saudade
   De não sei que melhor realidade,
           Que o mundo que se vê...

   Quantas vezes, depois da lida insana
   D'um dia, n'este mar da vida humana,
           Vendo surgir no céo
   Essa luz melancolica e suave,
   Eu acho então, e com que allivio, a chave
           D'este mysterio meu!...

   D'este amor por phantasticos amores...
   Comtudo mais leaes e duradores
           Que os d'esse mundo são!
   D'este mundo de sombras... até prestes,
   Sombra tambem, á sombra dos cyprestes
           Achar satisfação!

   E eu digo, digo á lua scismadora
   Com os olhos risonhos de quem chora
           Pranto consolador:
   Se pois Deus te creou porque eras bella...
   O que vale o sol mais do que uma estrella?
           Um rei do que um pintor?

   Ao vêr-te, dôce lampada, suspensa
   De vaporosa nuvem, n'essa immensa
           Abodada dos céos,
   Pareces-me o thuribulo sagrado
   Com os rolos de incenso evaporado
           Em tua honra, oh Deus!

   E a minha vista sofrega acompanha
   Esse clarão phantastico á montanha
           Ou da terra ou do mar,
   Onde, acabada a obra do seu dia,
   Astro d'amor e de melancolia,
           Se deita a descançar.

   E eu descanço tambem; filha da arte...
   Cumpre-me a mim, oh lua, contemplar-te!
           E pergunte-me alguem:
   --Tu que fazes no mundo, mulher futil?
   --O que Deus faz... na flôr, na lua inutil...
           Sou artista tambem.

Lisboa.

     *      *      *      *      *




PRIMEIRO PSALMO DE DAVID


   Bemdito o que não cahe em se guiar
   Por conselhos de gente depravada;
   E em vendo que vai mal, muda de estrada,
   E nunca se demora em mau lugar;

   Que o seu empenho é só unicamente
   A lei de Deus, que estuda noite e dia.
   Como a arvore ao pé d'agua corrente,
   Dá a seu tempo o fructo que devia.

   Nunca lhe cahe a folha; empresa sua
   Sahe por força conforme o seu intento;
   Em quanto o impio, o mau trabalha e sua,
   E é sempre como o pó, que espalha o vento!

   No tribunal, onde ha-de ser ouvido,
   Não conte com sentença a seu favor;
   Que não entra no numero escolhido
   Dos justos, dos amigos do Senhor.

   O justo, Deus bem sabe o seu caminho,
   E guia-o, não o deixa andar sósinho:
   E o caminho do mau, pelo contrario,
   É beco sem sahida e solitario.

Messines.

     *      *      *      *      *




SEGUNDO PSALMO DE DAVID


   Porque anda o mundo todo enfurecido,
   Se esforços contra Deus são todos vãos?
   Os grandes, mais os reis, deram as mãos
   Contra o Senhor, contra o seu Ungido,

   --Estas correntes, é despedaçal-as,
   Este jugo atirar com elle fóra!
   E lá cima no céo, o que lá mora
   Não faz mais que sorrir-se de taes fallas.

   Mas em lhe dando a ira, aonde então
   Se hão-de metter, com medo, os desgraçados!
   Coroou-me rei no alto de Sião,
   Cumpre-me publicar os seus mandados.

   «Tu és meu filho; disse-me o Senhor:
   Gerei-te hoje; pedir com confiança!
   Verás o mundo todo ao teu dispôr,
   Terras e povos, como propria herança.

   «Vara de ferro para os ir guiando,
   E fazel-os guardar-te obediencia;
   E elles de barro mal cozido e brando
   Que os partas em te oppondo resistencia.»

   Agora pois vós outros, reis, juizes,
   Reparai no que eu digo, e vêde lá;
   Servi a Deus, e dai-vos por felizes
   Cumprindo á risca as ordens que elle dá.

   Tomai os meus conselhos; ou, senão,
   Tende já como certa a perdição.
   Que em se elle irando, é como um raio; aquelle
   Que o despreza e não crê, infeliz d'elle!

Messines.

     *      *      *      *      *




CANTICO DOS CANTICOS DE SALOMÃO

Para os corações puros tudo é puro.

S. Paulo a Tito.


I

CHEGADA


       A SULAMENSE

   --Tomára já ter o gosto
   De o sentir beijar-me o rosto!

       CORO DE VIRGENS

   --E onde ha mulher que te exceda?
   Só esse collo embebeda.
   O aroma que elle exhala,
   Nenhum balsamo o iguala.

       2.º CORO

   --O teu nome, fallar n'elle,
   Só fallar n'elle é tão dôce
   Como se um oleo nos fosse
   Escorrendo pela pelle.

       SALOMÃO

   --Olha como todas ellas
   Te estimam tanto, as donzellas.

       A SULAMENSE

   --Sou tua, leva-me, vamos.

       CORO

   --E nós, que te não largamos,
   Te iremos correndo atraz
   Pelo rasto de perfume,
   Que deixas por onde vás,
   Das pomadas com que dás
   No corpo, como é costume.

       A SULAMENSE

   --Já el-rei me manda entrar
   Para a sala do jantar.

       CORO

   --Para saltar de alegria
   E festejar este dia,
   A nós basta-nos lembrar
   Que esse teu seio embebeda;
   Nem ha mulher que te exceda.

       2.º CORO

   --Quem te vê seja quem fôr
   Fica bebado d'amor.

       A SULAMENSE

   --Sou trigueira mas formosa,
   Moças de Jerusalem!
   Senão vêde o pavilhão
   Que arma em campo Salomão,
   Se ha coisa mais preciosa,
   E por fóra a côr que tem;
   Vêde as barracas dos moiros,
   Por dentro tantos thesoiros,
   Por fóra negras tambem.

   Não vos dê pois isso pena,
   Ter assim a côr morena:
   Minha mãi mandou-me pôr,
   Por culpa de meus irmãos,
   De guarda á vinha, o calor
   Queimou-me o rosto e as mãos:
   E eu, a vinha, é escusado
   Dizer-vos que nem eu tinha
   Senão agora o cuidado
   De estar a guardar a vinha.

   Ah! para que banda vás
   Com o gado, meus amores!
   E pela folga onde estás!
   Bem vês os outros pastores,
   E a gente não adivinha.
   Eu não hei-de andar atraz
   D'esses rebanhos sósinha.

       SALOMÃO

   --Ah rainha das mulheres!
   Olha como tu te enganas,
   Que medo tens das cabanas,
   Que medo tens dos rebanhos,
   Que medo tens dos estranhos?
   Não te dê isso cuidado,
   Anda por onde quizeres
   Tambem guardando o teu gado.
   Em te vendo, mesmo só,
   Toda a gente se desvia,
   Como da cavallaria
   Dos carros de Pharaó.

       CORO

   --Dás no rosto certo ar
   D'aquella graça da rola,
   Que até encanta, arrebata.

   A garganta pódes pôl-a
   Ao pé do melhor collar.

       2.º CORO

   --Um te havemos de nós dar
   De oiro, ás pintinhas de prata,
   Que é lindo, e has-de gostar.

       A SULAMENSE

   Já não sei pelo que aguardo
   Que estando el-rei a jantar
   Lhe não entorno por cima
   Esta redoma de nardo
   Que é um balsamo de estima.

   Mas ha outro mais perfeito,
   E com o qual me perfumo:
   Eu a myrrha que costumo
   Trazer aqui em meu peito,
   É mesmo aquelle a quem amo.
   Nunca apanhei outro ramo
   Nem outro alcanfor colhi
   Nas hortas dos arredores
   Da cidade de Engaddi.

       SALOMÃO

   --Como és bella, minha amante!
   Terá a pomba esse olhar?
   Outro não ha semelhante.

       A SULAMENSE

   --E quem mais bello e galante
   Mais formoso, meus amores!
   E mais de se cubiçar?

       SALOMÃO

   --Vês, o nosso leito é este,
   Armado todo de flôres:
   E olha o tecto é de cypreste,
   Portas de cedro, tambem;
   Aqui não entra ninguem.

       A SULAMENSE

   --Sou a rosa de Sarão,
   A açucena do val.

       SALOMÃO

   --Amada do coração,
   Entre as mais és tal e qual
   Uma açucena entre espinhos.

       A SULAMENSE

   --E entre os mais o meu amado
   A que ha-de ser comparado?
   Vês tu no bosque a maceira?
   És assim d'essa maneira.
   Por lograr os teus carinhos
   E boa sombra ha já muito
   Que eu andava a suspirar:
   Com effeito sombra e fructo
   Nada deixa a desejar.

   Elle deu-me do melhor
   Que tinha na sua adega;
   Mostrando-me assim primeiro
   Como faz quem tem amor.
   Trazei-me flôres de cheiro,
   Que estou como tonta e cega...
   Algum pomo, que esmoreço...
   Já um braço me elle passa
   Pelos hombros e me abraça
   Pela cinta... desfalleço...
   Ah desfalleço d'amor!

       SALOMÃO

   --Pela corça e o veado,
   Moças de Jerusalem!
   Não a acordeis, cuidado!
   Deixar dormir o meu bem,
   Um somno bem socegado.


II

ENTREVISTA


       A SULAMENSE

   --Quem é que eu oiço bradando?
   Oiço uma voz e por força
   Que é a voz d'elle esta voz:
   Ah! lá vem além saltando
   Montes e valles, nem corça
   Nem veado é mais veloz.

   Eil-o detraz da parede
   Além já da outra banda
   E o que elle faz, como elle anda
   A vêr no vallado todo
   E na cancella se ha modo
   De me pôr olho: ora vêde.

       SALOMÃO

   --Oh minha amada! depressa
   Vem vêr o campo, anda, vem:
   Mettida em casa, meu bem!
   Que demora tua é essa?

   Foi o inverno passando,
   Até que a chuva acabou:
   Veio a herva rebentando,
   Revestiu a terra toda,
   Chegou o tempo da poda,
   Ouviu-se a rola arrulhando,
   O figo vem já inchando
   E a vinha está já em flôr:
   Pelo que estás esperando?

   Quando has-de tu, meu amor!
   Andar então passeando?
   Ouve lá que estamos sós,
   E aqui não ha quem nos oiça:
   Vês esta fresta? é um gosto
   Até pela pedra ensossa
   Vêr assomar o teu rosto,
   Ouvir essa linda voz.

       A SULAMENSE

   --Toda em flôr, como está bella!
   Mas lá o ter flôr que monta?
   Se as boas das raposinhas
   A tomam á sua conta,
   Depois a uva que é d'ella?
   Bons laços se lhe hão-de armar,
   Que ellas dão cabo das vinhas
   Se ninguem as apanhar.

   Tu és meu; e eu tambem
   Sou tua, de mais ninguem.
   Nós somos como um casal
   De corcinhas, com effeito;
   Andamos sempre a vêr qual
   Guarda ao outro mais respeito
   E lhe ha-de ser mais leal.
   Logo ali de manhãsinha,
   Ou pela fresca, á tardinha,
   Quando a corça e o veado
   Volta aos valles de Belher,
   Cá ficas sendo esperado:
   Não te esqueça, haja cuidado,
   Vê lá o que has-de fazer.


III

SONHO


       A SULAMENSE

   --Não sei bem que sonho tive
   Esta noite, que acordei
   Sobresaltada, e que estive
   Ainda apalpando a cama
   Á busca de quem me ama
   E a quem ama; não achei:
   Levantei-me, rodeei
   A cidade toda em roda,
   Corri a cidade toda,
   Busquei tudo, não achei.
   Na rua pergunto á ronda:
   O meu amante que é d'elle?
   Não ha ninguem que responda.
   Vou andando; a poucos passos
   Vi vir um vulto: é aquelle.
   Chega e digo-lhe depois
   De o apertar nos meus braços:
   Quem se ama como nós dois,
   Só em mudando de estado
   É que vive descançado.
   Anda d'ahi, vamos pois
   Ao quarto mesmo onde dorme
   Minha mãi que me gerou
   (Que eu tua ainda não sou,
   Nem tu és meu, meu amigo!)
   A pedir a nossos paes
   A sua benção, conforme
   Costumam fazer os mais,
   E é já um costume antigo.

       SALOMÃO

   --Pela corça e o veado,
   Moças de Jerusalem!
   Não a acordeis, cuidado,
   Deixai dormir o meu bem
   Um somno bem socegado.


IV

NOIVADO


       CORO

   --Oh que mulher tão perfeita
   A que vem além andando!
   Vem espalhando um perfume
   E é tão airosa a andar!
   Parece quando se deita
   Incenso e myrrha no lume
   Que se vai desenrolando
   Aquella nuvem no ar.

       2.º CORO

   --Realmente é de invejar;
   Mas haja alguem que se afoite...
   Sessenta homens armados
   Dos mais desembaraçados
   Manda Salomão ficar
   De vigia toda a noite.

       CORO

   --É tudo á satisfação
   E gosto de Salomão.
   O andor onde elle sai,
   De tudo de que é composto,
   Cedro do Libano, olhai,
   É a coisa mais barata:
   Pernas e braços de prata,
   De oiro o mais fino o encosto;
   Onde põe os pés velludo:
   Não fallando em diamantes
   E pedras as mais brilhantes
   Que lá isso excede a tudo.

       2.º CORO

   --Além vem já Salomão:
   Lá vem elle já coroado
   Com a corôa do noivado
   Que a mãi lhe poz na cabeça
   Pela sua propria mão.
   Hoje é o dia fallado:
   Moços, moças de Sião!
   Assomai-vos já depressa.

       SALOMÃO

   --Que enlevo, que formosura!
   A pomba não tem de certo
   No olhar tanta doçura:
   E fóra o que anda encoberto.

   O cabello, em quantidade
   E tamanho, é singular;
   E não me lembra senão
   Das cabras de Galaad
   Que lhes rola pelo chão
   Em ellas indo a andar.

   Os dentes, em tu abrindo
   A tua boca, que lindo!
   Nem um rebanho d'ovelhas
   Todas brancas e parelhas
   Quando, em sendo tosquiadas,
   Veem saindo do banho
   D'uma em uma, enfileiradas,
   E atraz d'ellas, cada uma
   Seus dois gemeos d'um tamanho,
   Sem ser maninha nenhuma.

   Pois a bocca é comparada
   A uma fita encarnada.
   A voz ouvil-a é um gosto:
   Parte a romã pelo meio
   Verás as rosas do rosto;
   E fóra no que eu receio
   Fallar que me não é dado.

   O pescoço, pensa a gente,
   Em o vendo de collares,
   Que é a torre exactamente
   De David, n'esses ares,
   De baluartes, e toda,
   Lá cima, escudos á roda.

   Os peitos é um casal
   De corcinhas, que o seu pasto
   São açucenas do val:
   Nada mais timido e casto.
   E deitam um cheiro á goma,
   Da myrrha mais do incenso,
   A ponto que ás vezes penso
   Que elles são duas collinas
   Por onde aquellas resinas
   Espalham aquelle aroma.

   És formosa sem senão,
   Amada do coração!
   E que fazias tu lá
   Pelo Libano, pombinha!
   Deixa o Libano, anda cá.
   Vaes ser coroada rainha
   No mais alto d'Amaná
   Ou d'Hermão ou de Sanir,
   Onde ha leões e onde ha
   Leopardos... deves vir.

   Trespassou-me o coração
   O teu olhar; o cabello
   Prendeu-me como um grilhão.
   O teu peito, basta vêl-o,
   Para embebedar d'amor.
   E só o cheiro que exhala
   O teu corpo, não ha flôr,
   Não ha rosa, não ha cravo
   Capaz de cheirar melhor.

   A tua bocca é um favo
   De doçura quando falla;
   A tua lingua, uma sopa
   De leite e mel; essa roupa
   Cheira a incenso, regala.

   Não ha nada comparado:
   Agua a mais pura e suave
   De fonte fechada á chave,
   Não é mais suave e pura.
   Esse rosto, essa figura...
   E só o bem que tu cheiras!
   Não me parece senão
   Um jardim todo plantado
   De romeiras e maceiras,
   Canfora, nardo, assim como
   Açafrão, canna de cheiro
   Aloes, myrrha e cinnamomo:
   O que ha no Libano em fim;
   Não ha fruta nem aroma,
   Que se ahi não cheire e coma.
   És a fonte d'um jardim
   Toda pureza e frescura:
   Torno d'agua que rebenta
   Inda mais viva e mais pura
   Lá no Libano, e ninguem
   Lhe tem mão nem aguenta
   A força com que ella vem.

   Fizesse já sul e norte
   No meu jardim, de tal sorte
   Que alegretes e pomares
   Andasse tudo nos ares.

       A SULAMENSE

   --É natural que tu comas
   Da fruta do teu jardim.

       SALOMÃO

   --E que duvida que sim?
   Vamos primeiro aos aromas;
   O mel em favo depois
   E mais o vinho e o leite.
   Hoje é dia de banquete,
   Amigos do coração!
   É comer-lhe por quem sois
   E beber-lhe até mais não.


V

SURPREZA


       A SULAMENSE

   Estava a dormir... que importa?
   Velava o meu coração.
   Oiço o meu amado á porta:

   --Ah formosa sem senão,
   Minha pomba, minha amada!
   Trago a cabeça molhada,
   E os anneis do meu cabello
   Todos escorrendo orvalho,
   Estou mais frio que um gelo.

   --Dá-me isto agora um trabalho...
   Despi-me, lavei os pés,
   Estou na cama deitada,
   E é uma pena, bem vês,
   Vestir-me agora outra vez,
   Andar inda levantada.

   Vai elle empurra o postigo,
   E eu assusto-me de modo
   Que, na verdade vos digo,
   Tremia-me o corpo todo.

   Salto da cama exhalando
   Um cheiro delicioso:
   Eu tinha-me estado untando
   Com um oleo precioso
   E inda as mãos me iam pingando.

   Abro a porta, eis senão quando
   Elle foge de repente...

   Eu só de lhe ouvir a falla
   Fui ás nuvens de contente.
   E em paga de tudo, abala;
   Bradei-lhe, não me acudiu,
   Vou por essas ruas fóra
   Á busca d'elle, até'gora:
   Parece que o chão se abriu...

   Encontro a ronda, espancou-me;
   Um dos da guarda á entrada
   Da cidade, esse, roubou-me
   A capa onde ia embrulhada.

   Peço-vos isto por bem,
   Moças de Jerusalem!
   Contai tudo ao meu amado,
   Que elle é por amor de quem
   Estou n'este triste estado.

       CORO

   --O teu amado... responde,
   Formosura sem igual!
   Ha tantos onde escolher
   Que é necessario um signal.
   Qual é o signal por onde
   Havemos de o conhecer?

   --Eu vos digo: o meu amado,
   D'aquellas côres no mundo,
   Estou que não ha segundo;
   É muito branco e córado.
   A cabeça é um thesoiro
   Do que ha de mais principal;
   Que a sabedoria vale
   Mais do que a prata e o oiro.

   De negro que é o cabello,
   Vêr um corvo, é mesmo vêl-o.

   Os olhos, aquelle olhar,
   Ha n'elles uma doçura,
   Que não sei a que os compare;
   Só sendo a um casalinho
   De pombas, que estão no ninho,
   Todas pureza e candura.

   As suas faces rosadas,
   Rescendem como um canteiro
   D'aquellas plantas de cheiro
   De que fazem as pomadas.

   A bocca, digo a verdade,
   Que a açucena mais pura
   Cheia da myrrha melhor
   Não apresenta a doçura,
   Pureza e suavidade
   Das fallas do meu amor.

   Aquelles dedos, vereis,
   São uns canudos de anneis!

   O ventre d'elle é assim
   Como um cofre de marfim.
   As pernas, de musculosas,
   São columnas magestosas
   E de marmore inteiriço
   Em bases de oiro maciço.
   É o Libano em altura,
   É como um cedro na matta
   A sua bella figura.

   É tão suave, tão pura
   A sua voz, que arrebata.

   Todo elle é singular
   E todo de cubiçar.
   Eil-o ahi retratado,
   Moças de Jerusalem!
   E não só o meu amado;
   O meu amante tambem.

       CORO

   --Ah rainha das mulheres!
   Se sabes para que banda
   Elle iria o teu amigo,
   Anda d'ahi, vamos, anda:
   Nós imos todas comtigo
   Á busca d'elle se queres.

       A SULAMENSE

   --Elle parece-me a mim
   Que ha-de andar no seu jardim,
   A apanhar açucenas,
   Que é do que elle gosta apenas.

       SALOMÃO

   --Oh que formosa, meu bem!
   Não ha cidade afamada,
   Nem Thirsa ou Jerusalem,
   Mais bella que a minha amada.

   Mettes mais respeito andando,
   Que um exercito avançando.

   Os olhos faiscam fogo.
   Tira de mim essa vista,
   Que ao depois fugi eu logo
   Porque não ha quem resista.

   O cabello, em quantidade
   E tamanho, é singular!
   E não me lembra senão
   Das cabras de Galaad,
   Que o arrastam pelo chão,
   Em ellas indo a andar.
   Os dentes, em tu abrindo
   A tua bocca, que lindo!
   Nem um rebanho d'ovelhas,
   Todas brancas e parelhas,
   Ao vir sahindo do banho
   D'uma em uma, e cada uma
   Seus dois gemeos d'um tamanho,
   Sem ser maninha nenhuma.
   As faces não ha de certo
   Assim casca de romã
   De cor tão linda e tão sã.
   E fóra o que anda encoberto.

   És tão formosa, vê lá,
   Que as rainhas são sessenta,
   As concubinas oitenta,
   Donzellas, quem é que as dá
   Todas contadas? ninguem.
   Pois e de quantas possuo,
   A minha pomba, o meu bem,
   A minha mimosa, és tu.
   E o mesmo dizia já
   Lá em casa tua mãi,
   Com tantas filhas que tem.

   Quando chegaste, as donzellas,
   Concubinas e em summa
   As rainhas, todas ellas
   Sem excepção de nenhuma,
   Gritaram todas á uma:
   Viva a rainha das bellas!


VI

PASSEIO


       CORO

   --Que linda mulher aquella!
   Nem a aurora lhe ganha.
   A lua não é tão bella
   Nem a luz do sol tamanha;
   Mette mais vista só ella
   Que um exercito em campanha.

       A SULAMENSE

   --Nunca tive um susto igual!
   Ia á horta das nogueiras,
   Ia passear ao valle,
   Vêr se tinha flôr a vinha
   E já romãs as romeiras;
   Mas a multidão que vinha
   Atraz de mim era tal
   Que não vi nada, e tão cedo
   Apanho tamanho medo.

       CORO

   --Oh não fujas, anda cá,
   Sulamense! deixa vêr
   Belleza como não ha
   No mundo nem póde haver.

       SALOMÃO

   --Arrebata na verdade,
   Mas como um canto de guerra,
   Porque ao mesmo tempo aterra
   Este ar e magestade.

   O teu andar, que nobreza!
   E tem o pé uma graça
   Assim calçado, princeza!

   Os joelhos, que perfeitos!
   Não ha ourives que faça
   Eixos de oiro mais bem feitos.
   Umbigo, qual é a taça,
   D'estas taças pequeninas
   Por onde a gente costuma
   Beber bebidas mais finas,
   Tão redondinha? Nenhuma.

   É o ventre de tal modo
   Casto e fecundo, que apenas
   Um monte de trigo, todo
   Rodeado de açucenas
   Me parece haver no mundo
   Assim tão casto e fecundo.

   O teu seio é um casal
   De corcinhas, que o seu pasto
   São açucenas do val:
   Nada mais timido e casto!

   Lembra-me o pescoço a mim,
   Uma torre de marfim
   E os olhos, esses então
   Os dois lagos de Hesebão.

   Vês a torre que apparece
   Lá no Libano, e que diz
   Para Damasco? parece
   Na lindeza esse nariz.

   A cabeça vêl-a toda
   Por cima das mais, é bello,
   Como a serra do Carmelo,
   Toda collinas á roda.

   O cabello é tal e qual
   Um grande manto real!

   É tudo uma perfeição,
   Amada do coração!

   Vêr-te é vêr uma parreira
   Armada n'uma palmeira;
   E lá em cima os teus peitos,
   No tamanho e no feitio,
   Dois cachos d'uvas perfeitos
   Que a parreira produziu.
   E eu disse d'esta maneira:
   Dois cachos d'uvas tão bellos
   Hei-de ir lá cima colhel-os;
   Que bem se vê que a doçura
   Corresponde á formosura;
   E que a tua bocca é pura
   E a respiração é sã
   Como o cheiro da maçã
   Quando se apanha madura.

   --Como é suave e me encanta
   O que me estás a dizer!
   A voz da tua garganta
   Embebeda como o vinho,
   D'esse que a doçura é tanta
   Que se costuma beber
   Aos sôrvos, devagarinho.

   És só meu e eu tambem
   Sou tua, de mais ninguem.
   Anda com a tua amada
   Morar para o campo, amor!
   Iremos de madrugada,
   Logo ao romper da manhã,
   Em se a gente levantando,
   Vêr se a vinha já tem flôr,
   Se está em flôr a romã
   E se a fruta vai vingando.
   Alli é que eu hei-de então
   Abrir-te o meu coração.

   Estamos na primavera,
   A mandrágora já cheira,
   E em minha casa, estar lá,
   É como estar n'uma horta:
   Mesmo ao pé da nossa porta
   Temos quanta fruta ha.
   E o teu quinhão, meu amado!
   Assim do anno passado
   Como da que vem agora,
   Esse está sempre guardado.

   Ouvisse-te eu n'esta hora
   Chamar mãi á minha mãi!
   Como se tu com effeito
   Fosses criado ao seu peito
   Assim como eu fui tambem:
   Então já eu te beijava
   Ás claras e te abraçava
   Sem vergonha de ninguem.

   Vamos aonde ella dorme,
   A pedir a nossos paes
   A sua benção, conforme
   Costumam fazer os mais,
   E depois seja o que fôr
   É só mandar, meu amor!

   Verás como te hei-de dar
   D'um vinho delicioso
   E d'um licor precioso,
   De romã, que has de gostar.
   .........................
   Um braço já me elle passa
   Pelos hombros... e me abraça
   Pela cinta... o meu amado!
   --Deixai-a dormir, cuidado,
   Moças de Jerusalem!
   Deixai dormir o meu bem
   Um somno bem socegado.
   ......................

Messines.

     *      *      *      *      *




   Ouviste-me não sei quê
   Trincolejar n'algibeira,
   Acudiste mui lampeira,
   Que me amavas. Já se vê.

   Tens amado mais de mil,
   Não era agora o primeiro.
   Mas pensas que era dinheiro?
   É a pedra e o fuzil.

Messines.


FIM

     *      *      *      *      *




INDICE


   A poesia                                          1
   A uma carta anonyma                               4
   Duas rosas                                        5
   A uma mulher                                      8
   A D. Candida Nazareth                            11
   Amor                                             14
   A donzella e o musgo                             17
   Ultimo adeus                                     23
   Rosas                                            26
   Rosa e rosas                                     28
   A Hermann                                        30
   Presentimento                                    33
   Marina                                           36
     I--Apparição                                   36
     II--Saudade                                    39
     III--Eternidade                                41
     IV--... 21 de setembro                         42
   N'um album                                       46
   Beijo na face                                    49
   Thuribulo suspenso inda fluctuo                  53
   Luz d'intima influencia                          55
   Resposta                                         58
   Pois se o homem, se anjo e nume                  59
   Flôr e borboleta                                 62
   Remoinho                                         64
   Amores, amores                                   71
   Fabula                                           73
   Boas noites                                      74
   Gaspar                                           76
   Deixa que ao romper d'alva o cravo abrindo       77
   Carta                                            79
   Dá-me esse jasmim de cera                        85
   Margarida                                        87
   No leito nupcial                                 90
   A minha mãi                                      93
   Beatriz                                          94
   Innocencia                                       97
   A Escriptura Sagrada                            101
   A um Nuno                                       104
   A ***                                           105
   Luz da fé                                       107
   Resposta                                        112
   Meu casto lirio                                 113
   Ventura                                         116
   Arida palma                                     117
   A uns olhos azues                               119
   Heresta                                         121
   Fragmento                                       129
   Se ao enlaçal-a no peito                        145
   Nunca me ha-de esquecer                         146
   Dinheiro                                        147
   Duvida                                          150
   Caturras                                        154
   Foi-se-me pouco a pouco amortecendo             160
   Mãi e filho                                     170
   Toca a capello, vou vêl-o                       173
   Amas, pobre animal! e tens tu pena?             174
   Não!                                            175
   Na folha d'um romance                           181
   Lagrima celeste                                 182
   Descalça!                                       185
   Adeus!                                          187
   A Victoria Colonna                              190
   N'um convento                                   191
   Sonho                                           193
   Á vista d'um retrato                            196
   A lua                                           198
   Joven captiva                                   200
   Mulher! quando nos braços                       203
   Um beijo                                        205
   Francisca de Rimini                             207
   Paixão                                          212
   Escreve                                         214
   Malmequer                                       219
   Virginia                                        221
   Primeiro psalmo de David                        227
   Segundo psalmo de David                         229
   Cantico dos Canticos de Salomão                 231
     I--Chegada                                    231
     II--Entrevista                                239
     III--Sonho                                    242
     IV--Noivado                                   244
     V--Surpreza                                   251
     VI--Passeio                                   259
   Ouviste-me não sei quê                          266





End of the Project Gutenberg EBook of Flores do Campo, by João de Deus

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FLORES DO CAMPO ***

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work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
    Dr. Gregory B. Newby
    Chief Executive and Director
    [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

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This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
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